O papel memorial e espiritual da literatura garante uma rica troca entre escritores na mesas de curadoria do domingo

16 de novembro de 2022 - 19:03 #

Fotógrafo: Txai Costa

Márcia Kambeba, Pedro Salgueiro e Daniel Munduruku discutiram o tema “Texto e memória”, seguidos por Mária Valéria Rezende e Ademário Payayá conversando sobre “Literatura e espiritualidade”

O Brasil tem uma grande potencialidade espiritual, limitada por sua dificuldade de dialogar com o indizível. Essa foi a reflexão feita por Ademário Payayá. Já para Daniel Munduruku, o senso de pertencimento e comprometimento do país consigo mesmo só pode acontecer quando o Brasil parar de fugir das dores de seu passado. Trazendo suas histórias e suas vivências como leitores e produtores de leitura, os escritores participantes das Mesas de Curadoria – O Mundo e suas Voltas do domingo (13) trouxeram as memórias como elemento de força para o texto e abordaram como a espiritualidade se interrelaciona com a literatura. A programação das Mesas de Curadoria acontecem às 18h e 20h na Sala 3 do Mezanino leste, andar superior. A Bienal do Livro é uma realização da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult Ceará) e do Instituto Dragão do Mar (IDM). ⁠

Daniel Munduruku, curador da Bienal e autor de mais de 50 livros, fez parte da mesa “Texto e memória” juntamente com os autores Márcia Kambeba e Pedro Salgueiro, e descreveu a literatura como “um remédio que mexe com o nosso eu mais profundo, com o nosso imaginário. Permite que a gente invada territórios muito escondidos do nosso coração, do nosso espírito, da nossa ancestralidade.” Munduruku foi além e ao creditar à literatura um papel fundamental na construção de consciências. “Essas consciências podem nos ajudar a entender o nosso papel no mundo, e não nos esquecermos – isso é primordial – não nos esquecermos quem nós somos, de onde viemos.”

Mas não é apenas a literatura no seu formato mais conhecido do livro impresso que tem esse poder tão indispensável. Pedro Salgueiro ressaltou que seu primeiro contato com a cultura e a literatura foi oral, algo comum a todos os povos. “Se o texto é um ato de memória, então o texto em forma de palavra falada tem também muita importância na preservação da memória”, reforçou. É assim para Daniel e para o povo Munduruku, que dizem caber aos pais educar o corpo da criança, o que eles fazem ensinando como sobreviver na floresta. “Mas cabe aos avós a educação do espírito, da alma. E como eles fazem isso? Eles contam histórias.”

Márcia Kambeba contou com emoção a história de sua trisavó Maria, uma das protagonistas de seu próximo livro “De Alma e Águas Kunhãs”, a ser lançado em 2023. “Ela se calou, mas ela não se rendeu. Ela foi casada com um português, coronel Isidoro, ela foi por ele capturada. ‘Ela andava sempre nua’, dizia a minha vó Delma, ‘e ela fazia instrumentos musicais’. Olha que interessante, a minha trisavó fazia instrumentos musicais, e só via chegar as canoas de indígenas de outras aldeias no seringal. Eles subiam, e eles cantavam até o dia amanhecer, e a minha avó junto. E a gente ficava ouvindo, sentado na sala, na porta, e ele não se metia.’ O coronel Isidoro não se metia. Ela nunca falou português. Isso também é uma forma de lutar, isso também é uma forma de resistência. Então ela mostrou pra nós a resistência que se dá, a luta que se dá. E foi legado. Depois a vó Delma, veio Assunta, que era a minha vó, e aí a gente continua esse legado, tentando fazer jus a essas outras ancestrais” A espiritualidade comum a todos

A segunda mesa da noite, “Literatura e espiritualidade”, foi conduzida por Ademário Payayá, escritor e indígena do povo Payayá, e Maria Valéria Rezende, escritora e educadora popular que viajou por todos os continentes. Ambos, pelos seus próprios caminhos, chegaram a conclusões parecidas sobre a universalidade da religião.

Ademário exemplificou: “Os Ianomâmi, há mil anos, acreditavam em sua profecia de que, quando morrerem os últimos pajés, o céu cairá sobre a terra. Também o sol e as estrelas cairão, e tudo vai escurecer. E no Apocalipse se diz: “o céu escureceu num tecido de crim, negro. A lua se tornou roxa como sangue. E as estrelas do céu caíram sobre a terra.” Parece que quem escreveu a Bíblia foram os Ianomâmi, né?”

Essa conexão entre os povos mais distantes é, para Maria Valéria, um conhecimento transformador. “Nesse mundo em que vivemos agora, que o capitalismo fez o favor de misturar tudo e amarrar tudo do jeito dele, os muito ricos e muito pobres são iguais no mundo inteiro. Os muito ricos porque andam nos mesmos aviões, se hospedam nos mesmos hotéis, vestem as mesmas roupas das mesmas marcas, repetem as mesmas ideias permanentemente. Os muito pobres, num primeiro momento, nos parecem muito diferentes, porque se vestem, se alimentam, organizam sua vida de acordo com a natureza local, e a natureza difere. Mas quando a gente chega mais perto, descobre que somos muito parecidos. Por que os muito pobres vivem todos os dias ao nível das necessidades humanas fundamentais, que são as mesmas para todos os povos.”

E essas necessidades, a educadora continua, não são apenas as físicas, mas também as espirituais. “Jamais foi encontrado povo”, lembra Valéria, “que não tivesse arte ou religião. Religião é a tentativa de representar algo maior que nós, tentativa de dizer o mistério e a transcendência que intuímos. E também é isso que a arte é. A literatura que eu acho que vale a pena está a serviço disso também.”

As atividades da Arena Bece dos demais dias estão disponíveis no site bienaldolivro.cultura.ce.gov.br

Em sua 14ª edição, a Bienal Internacional do Livro do Ceará acontece de 11 a 20 de novembro de 2022 no Centro de Eventos do Ceará. Apresentada pelo Governo do Ceará, por meio da Secretaria da Cultura e do Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura (IDM), o evento acontece em parceria com a Secretaria de  Educação do Ceará (Seduc), Secretaria de Turismo do Ceará (Setur), Secretaria de Ciência, Tecnologia  e Educação Superior do Ceará (Secitece), Programa Mais Infância, Universidade Estadual do Ceará, Biblioteca Pública Estadual do Ceará (Bece), o Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas do Ceará, a Câmara Cearense de Livro e o Sindilivros CE. O apoio é da RPS Eventos, Sesc Senac, Banco do Nordeste Cultural, Universidade de Fortaleza, Unilab, Universitária FM, TV Ceará, Jornal O Povo/Vida e Arte, Fundação Demócrito Rocha, Pixels Educação Tecnológica, Instituto Juventude Inovação, Secretaria Municipal de Educação e Prefeitura de Fortaleza.