A Cultura em Estado de Emergência, de Resistência, de Conferência e de Confederação

19 de junho de 2020 - 20:54 # #

A CULTURA EM ESTADO DE EMERGÊNCIA, DE RESISTÊNCIA, DE CONFERÊNCIA E DE CONFEDERAÇÃO

– Por Fabiano dos Santos Piúba*

(Foto: Abertura do Curso de Princípios Básicos de Teatro em março de 2020, no Theatro José de Alencar. Créditos: Felipe Abud)

 

Fala de encerramento do Curso Introdutório sobre a Lei Aldir Blanc de Emergência Cultural no Canal de Emergência Cultural do Comitê Nacional da Lei de Emergência Cultural, com transmissão da Mídia Ninja, na tarde de domingo, 14 de junho de 2020. Roda compartilhada com o tema “Cultura em Estado de Emergência”. Participações: Jorge Melguizo (Colômbia) / Jandira Feghali (RJ) / Sônia Guajajara (MA) / Úrsula Vidal (PÁ) / Fabiano Piúba (CE) / Celio Turino (SP) / Alexandre Santini (RJ) / Mediação: Marcelo Ricardo (SP).

 

A cultura em estado de emergência

A ideia de emergência está associada a um perigo, um incidente, uma situação inesperada que surge como uma ameaça imediata para o nosso bem-estar. Dito de outra maneira, está associada, portanto, à preservação da vida.

A pandemia do Covid-19 decretou o mundo em estado de emergência. Embora sua noção esteja predominantemente associada a medida hospitalar, segundo os estudiosos, existem basicamente quatro tipologias: “1. Emergência de perigo para a vida: quando a vida está em perigo devido a desastres naturais. É a mais alta prioridade, uma vez que a vida humana é considerada a coisa mais importante; 2. Emergência de perigo para a saúde: quando alguém precisa imediatamente de alguma ajuda em relação à sua saúde, para que sua vida não esteja em perigo no futuro próximo; 3. Emergência de Perigo de propriedade: quando a propriedade está em perigo, como em um incêndio na construção; 4. Emergência de Perigo ao meio ambiente: como incêndios florestais e vazamentos de óleo”.

Mas, em caso de emergência, com a Lei Aldir Blanc, estamos puxando a alavanca para preservação da vida e do bem-estar em um sentido mais amplo. Imagino que criamos uma terceira tipologia de emergência. O perigo à cultura e às artes: quando a vida dos trabalhadores e das trabalhadoras das artes e da cultura estão em perigo devido a uma pandemia e/ou quando a vida social dos espaços e ambientes culturais estão sob risco de um desastre político. Sob a ameaça de um pandemônio político.

A Lei Aldir Blanc é, portanto, emergencial, mas ela vai para além da emergência, considerando a forma como nos envolvemos em todo seu processo. Para nós, ela é tática, é estratégica e tem que ser operacional. É tática porque ainda estamos em movimentos (aprovamos de forma consagradora na Câmara dos Deputados e no Senado com uma tática vitoriosa), mas necessitamos ainda de sua sanção presidencial e regulamentação. É estratégica porque precisamos ter um plano definido para sua implementação. E é operacional porque devemos executá-la com um plano de trabalho com vistas aos bons resultados para o campo das artes e da cultura e seus possíveis impactos socioeconômicos, socioculturais e humanos.

Nesses termos, estamos empenhados na sua regulamentação nos estados e munícipios, desenvolvendo os planos de gestão compartilhada e implementação integrada da Lei Aldir – é assim que estamos chamando este plano no Ceará – que passa por ação articulada entre os entes da federação e a sociedade civil nas questões referentes à renda básica, ao auxílio aos espaços culturais e a realização dos editais. Neste curso que encerra hoje sua primeira fase, no Fórum Nacional de Secretários e Secretárias Estaduais de Cultura, no Fórum Nacional de Dirigentes de Cultura das Capitais e Municípios Associados, na Associação Brasileira dos Municípios (ABM), na Confederação Nacional dos Municípios (CNM) e, no caso do Ceará, com a Associação dos Municípios do Ceará (APRECE) e o Conselho dos Dirigentes Municipais de Cultura (DICULTURA), nossos esforços estão voltados para sua regulamentação em parceria com a sociedade civil.

Estamos, por exemplo, tratando de como os Fundos de Cultura vão receber e executar estes recursos; qualificando os mecanismos de cadastros e nossos mapas culturais; fortalecendo os papéis dos conselhos de cultura, dos fóruns de linguagens artísticas e dos segmentos culturais em todo esse processo; minutando legislações próprias para regulamentação da lei Aldir Blanc nos estados para que possamos executá-la de maneira mais ágil e com segurança jurídica, conversando com as secretarias de planejamento, fazenda, controladoria e procuradoria gerais, dentre outros aspectos. Em suma, nosso desafio é fazer acontecer o Sistema Nacional de Cultura.

O que estou querendo dizer é que a Lei Aldir Blanc tem um caráter emergencial com um desafio operacional, mas que também é estratégico. Afinal, estamos apostando muitas fichas na sua implementação. E quando fazemos essa aposta, ela é uma aposta política.

A cultura em estado de resistência

Os desafios da cultura são bem mais amplos do que de um estado de emergência. Porque, na verdade, sempre estivemos em estado de emergência e, muito mais do que isso, em estado de resistência, sobretudo as culturas indígenas e afro-brasileiras. As artes e as culturas, sabemos, estão sempre em estado de resistência. Aliás, Deleuze escreveu em Conversações que “a arte é o que resiste: ela resiste à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha.” E eu complemento, resiste à ignorância.

O desafio das culturas e das artes nos tempos que correm é resistir à ignorância. Com ela, estamos resistindo à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha. Cultura é ser/estar no mundo. É se relacionar e se perceber no mundo e com o outro. É atribuir sentidos e significados ao mundo, à vida em sociedade. A arte é um posicionamento diante do mundo. A arte é conhecimento e cena. É ruptura e dissidência. A arte desorganiza e cria mundos. A arte é desassossego e frenesi. A arte é inventividade e liberdade. A arte é política. Façamos arte e estamos fazendo política. A arte é trans: transformação, transcendência e transgressão. A arte ocupa esse lugar do choque, do incômodo, da reflexão, da inquietude e da criação que nos fazem enxergar além e mais longe.

A cultura vai transcender o Brasil. Transcender é ultrapassar. E para avançarmos, temos que transcender a nós mesmos, perguntando ao infinito e a nós próprios quem somos e o que desejamos como realidade e/ou utopia. Transcender é atravessar. Transcender é transpor. A cultura vai atravessar e transpor o Brasil com sua transcendência vital e necessária.

A cultura em estado de conferência e de confederação

Tenho dito que o processo de mobilização em torno da Lei Aldir Blanc de Emergência Cultural nos colocou em um estado permanente de conferência nacional de cultura. Um estado de espírito, um estado de ânima e um estado político de encontro e movimento. Num contexto de isolamento social, nem nós esperávamos por isso. Emergiu de uma mobilização emergencial em torno de um projeto de lei de iniciativa das formidáveis Benedita da Silva e Jandira Feghali (a tecelã compositora) e foi ganhando corpo sensível e político com força e ternura, reacendendo um tanto de encantamento pela cultura e um caldo de resistência por meio da arte. A Lei Aldir Blanc de Emergência Cultural é fruto de uma construção social e de autoria coletiva.

Gosto de pensar a cultura como saber/fazer comum, portanto, a cultura como solidariedade e elemento (água, terra, fogo e ar) de transformação de vidas e transgressão de realidades.

Portanto, este estado de conferência nacional de cultura é um ato político solidário para com o Brasil. Ou um gesto generoso da cultura, como já enfatizou Célio Turino. Portanto, cabe a nós manter essa chama acessa. A democracia está sob ataque e a cultura tem um papel central para seu exercício pleno e para soberania nacional. Não podemos nos distrair nem desmobilizar nosso estado de espírito político de conferência nacional de cultura. Tolo de quem pensa que só estamos lutando por uma lei emergencial. Em nós ecoa os Doces Bárbaros de Gil, Caetano, Bethânia e Gal: com amor nos corações preparamos a invasão (da cultura) cheio de felicidades, entrando em nossas cidades amadas, pois nossos planos são muitos bons!

E a realização de uma Conferência Nacional de Cultura já vem andamento por mãos e mentes, cabeças e corações, corpos e espíritos de muita gente e de muitos rincões e territórios. Um Manifesto tá saindo do forno escrito com a mesma base e espírito coletivo que foi incorporado na construção da Lei Aldir Blanc. São tantas as pessoas e são tantas as gentes. Muito de nós aqui estivemos na I, II, III e estaremos na IV Conferência Nacional de Cultura, porque o MinC somos nós e ele virá impávido que nem Mohamed Ali, axé dos afoxés dos Filhos de Gandhi.

Virá naturalmente como Raoni e aquilombado como Zumbi. Esperançosamente como Paulo Freire e dialógico como Augusto Boal. Virá amazonicamente como Chico Mendes e nordestino como Patativa do Assaré. Peregrinamente como Antônio Conselheiro e sertanejo como Luiz Gonzaga. Virá poeticamente como Manoel de Barros e em prosa como Guimarães Rosa. Liricamente como Cartola e ancestral como Clementina de Jesus. Virá academicamente como Milton Santos e impulsionador como Abdias do Nascimento. Magistralmente como Fernanda Montenegro e intenso como Zé Celso. Virá revoltosamente como o Almirante Negro João Cândido e bravo como o Dragão do Mar. Revolucionariamente como Anita Garibaldi e primorosa como Tarsila do Amaral. Virá transgressora como Pagu e tigresa como Zezé Mota. Imaginariamente como Bispo do Rosário e demasiada humana como Nise da Silveira. Virá musicalmente como Milton Nascimento e apimentada como Elis. Sonhadoramente como Bethânia e romântica como Sônia Braga. Virá milimetricamente como Emicida e com o pensamento afiado de Djamila Ribeiro. Plenamente como Carolina de Jesus e doce como Cora Coralina. Virá amorosamente como Dom Hélder Câmara e vibrante como Marielle Franco. Serenamente como Ailton Krenak e precisa como Eliane Brum. Virá brilhantemente como Chico Buarque e trovador como Belchior. Genialmente como Villa-Lobos e bruxo como Hermeto Paschoal. Virá primorosamente como Jorge Amado e inquieto como Glauber Rocha. Engenhosamente como Ziraldo e mineiro como Carlos Drummond de Andrade. Virá arquitetonicamente como Lina Bo Bardi e com o paisagismo de Burle Marx. Virá alegremente como Antônio Pitanga e com os parangolés Hélio Oiticica. Virá enfeitiçadamente como Dona Onete e com a ciranda de Lia de Itamaracá. Artesanalmente como Vitalino e com a viola rimada de Cego Aderaldo. Virá ancestralmente como as rodas dos mestres Bimba e Pastinha e com a leveza de Ana Botafogo. Comunitariamente como os Irmãos Aniceto do Crato e com a rima embolada de Bule-Bule. Virá encantadoramente como Davi Kopenawa e fabulosamente como Conceição Evaristo. Virá literalmente como Machado de Assis e inteiro como Darcy Ribeiro. Virá apaixonadamente como Caetano Veloso e infalível como Elza Soares. Ministerialmente lindo como o Griô do futuro Gilberto Gil e com a tropicália brasileira.

Tomados pelos sentidos e sentimentos de pessoas de distintos lugares do Brasil, será uma Conferência, mas também uma Confederação Nacional da Cultura. Confederação no sentido de reunir pessoas de distintos estados, regiões e territórios com o propósito de constituir pensamentos que nos movam política e socialmente em torno não só da cultura, mas de uma visão de nação e país. Proponho, então, que possamos nos confederar, tomados pelos espíritos da Confederação dos Tamoios (1554 e 1567), da Confederação dos Cariris / Guerra dos Bárbaros (1682 e 1713) e da Confederação do Equador (1824), realizaremos a Confederação Trópica-Cultural do Brasil. Uma conferência nacional de cultura, mas também do meio ambiente, da democracia, da educação, da justiça social, compreendendo a cultura em sua diversidade plena étnica, artística, de gênero, de territórios e de espécies. Assim assado, a Confederação Nacional da Cultura será também uma Confederação. Ao invés da palavra “delegado” em nossos crachás, meu caro e querido amigo Marcelo das História, teremos a palavra “confederado”. O meu será assim: Confederado Fabiano Piúba, Ceará.

Pois bem, se o mundo está acabando – na verdade estão acabando com ele – ao fim e ao cabo, nosso desafio é adiar o fim do mundo. Em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo” Ailton Krenak escreve: “Nosso tempo é especialista em produzir ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar e de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta e faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim do mundo. É importante viver a experiência da nossa própria circulação pelo mundo, não como uma metáfora, mas como fricção, poder contar uns com os outros”.

Anotemos. As artes e as culturas vão adiar o fim do mundo com suas pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, conta histórias e faz chover.

Muito obrigado.

Fabiano dos Santos Piúba

Historiador. Mestre em História (PUC-SP) e Doutor em Educação (UFC). Escritor, professor, editor, compositor e gestor cultural. Secretário de Cultura do Estado do Ceará desde fevereiro de 2016.