Curso Nacional de Sanfona da Secult Ceará efetiva nova geração de multiplicadores dessa cultura e tradição musical

24 de janeiro de 2024 - 17:32

Conheça o trabalho que movimenta profissionais do estado, traz intercâmbio entre cearenses e alunos de outras regiões do Brasil e torna possível a formação de músicos e musicistas, inspirados na melodia e pertencimento simbólico da sanfona

Concerto realizado no sábado (20) marca conclusão da primeira etapa do curso   Foto: Jeny Sousa

Um sol daqueles banha Fortaleza na manhã de sábado (20). Quem passa pelas proximidades do Centro de formação, capacitação e Pesquisa Frei Humberto, é conquistado pelo melodioso som da sanfona. Quem chega mais perto nota que o encanto é maior. No palco, a música é comandada por uma orquestra de sanfoneiras e sanfoneiros.

O concerto é protagonizado pelos estudantes do “Curso Nacional de Sanfona”. A iniciativa, inédita no País, conta com parceria entre a Secretaria da Cultura do Ceará (Secult Ceará) — por meio da Escola Porto Iracema das Artes, espaço cultural gerido em parceria com o Instituto Dragão do Mar (IDM) — e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Com o clássico “Asa Branca”, a turma “Marinês” celebrou a conclusão da primeira fase desta formação. Durante 15 dias de imersão em Fortaleza, os futuros músicos e musicistas, advindos de várias regiões do Brasil, acompanharam de perto os ensinamentos de referências do instrumento.

Todo esse processo movimentou profissionais do estado, permitindo intercâmbio de saberes, culturas e vivências entre alunos cearenses e de outras localidades brasileiras. Esta pioneira formação acontece no âmbito do projeto “aBarca Porto MST – Arte e Cultura na Reforma Agrária”.

Desenvolvido pela Secult Ceará desde 2022, o projeto aBarca promove a expansão de atividades de ensino básico em artes. Atende o público em situação de vulnerabilidade social, residente nos municípios de Fortaleza (Bairros Vicente Pinzón e Curió), Caucaia, Maranguape, Maracanaú, Itapipoca, Sobral, Quixadá, Iguatu, Crato e Juazeiro do Norte.

Momento repleto de emoção com “Asa Branca” Foto: Jeny Sousa

A secretária da Cultura do Ceará, Luisa Cela, reforça a importância das formações no acesso à cultura e cidadania. “Precisamos ter um olhar especial para a população do campo, os assentados e as assentadas, para chegarmos mais perto de conseguir cumprir o nosso dever constitucional de assegurar os direitos culturais para todas as pessoas”, avalia.

As aulas foram ministradas pelo compositor, músico e sanfoneiro cearense, Nonato Lima. A orientação também contou com o professor e discente de Bacharelado em Composição da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Márcio Diniz. Um reforço de peso foram os workshops, orientados pelo compositor, acordeonista, pianista, arranjador e produtor musical, Adelson Viana, Juan Torquato e Karolzinha Sanfoneira.

“É nosso papel cultivar, fomentar e que mais pessoas possam desejar, aprender e tocar. Faz parte também esse esforço de preservar manifestações tão próximas da nossa história e identidade”, partilha a secretaria da Cultura do Ceará, Luisa Cela  Foto: Jeny Sousa

E o projeto não para por aqui. Durante os próximos três meses, o curso ocorrerá em formato remoto. Após este segundo ciclo formativo, o grupo formado por 23 assentados e assentadas da reforma agrária se reunirá novamente para uma nova etapa presencial.

Seu Luiz tá orgulhoso

Horas antes da turma “Marinês” mostrar os conhecimentos, a equipe técnica estava nos últimos ajustes. No palco, apenas as sanfonas repousavam esperando o momento. Na cozinha, o aroma do feijão anunciava o dia saboroso que estava por vir. A “Feijoada dos Sanfoneiros” celebra o trabalho educativo que formará novos artistas e multiplicadores da tradição e arte da sanfona no Brasil.

Nonato Lima chega para dois dedos de prosa. O professor já ministrou formações no instrumento pelo Brasil e outras partes do mundo, mas um curso com essa intensidade e configuração foi algo inédito na carreira deste profissional da cultura. “Foi algo muito desafiador, mas imensamente gratificante”, avisa de início.

“O que for para fazer pela cultura, pela arte, sempre estarei junto do povo. É uma missão que já vem desde Luiz Gonzaga. Ele, nos anos 1980, por onde passava e via sanfoneiros, doava um instrumento porque não queria que essa cultura morresse. Dominguinhos também incentivava. E eu, como discípulo desses mestres, tenho essa missão de passar um pouco do meu conhecimento. Neste intensivo de 15 dias, tivemos o conteúdo de seis ou sete meses. Foi um pouquinho suado para os alunos, mas todos tiveram um resultado muito positivo”, destaca Nonato Lima.

“A sanfona é a forma de dar voz para esse povo sofrido que quer ter seu lugar. A sanfona, arte e cultura são as armas mais precisas que temos”, diz Nonato Lima   Foto: Jeny Sousa

O sábado é de fortes emoções para o professor Márcio Diniz. Em suas palavras, os 15 dias de atividade marcaram uma experiência inspiradora. Uma ação de cidadania e acesso a cultura com alunos e alunas que, na grande maioria, tiveram o primeiro contato da vida com o acordeon.

“Tivemos gente de todo Brasil, Rio Grande do Sul, Alagoas, Pernambuco, São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Bahia. Acredito que a semente plantada aqui no Ceará vai gerar bons frutos por todo o País. Nasceu neles a paixão pelo instrumento, isso é bastante importante. Vemos no olhinho de cada um aquele brilho. Quando olha ou toca a sanfona. Isso foi maravilhoso e bastante recompensador”, descreve.

Segundo Diniz, a imersão em sala foi focada na parte prática e também atendeu a contextualização do campo teórico musical. Momento de entender a história do instrumento, sua técnica e idiomática. Além da troca de vivências com profissionais da área, aprendeu-se como o acordeon funciona por dentro, em suas engrenagens.

E quem entrevista, também ganhou uma aula sobre o fole. A família do acordeon surgiu do “sheng”, instrumento de sopro chinês que usa o mesmo sistema de palhetas que vibram com o ar. Tempo depois, na Itália, foi desenvolvido o acordeon conhecido em terras brasileiras hoje.

“Nasceu neles a paixão pelo instrumento, isso é bastante importante. Vemos no olhinho de cada um, aquele brilho”, descreve Márcio Diniz    Foto: Jeny Sousa

Por ser de fácil locomoção, explica Diniz, a sanfona se uniu a várias culturas populares pelo mundo. “Você consegue levar para qualquer lugar. O piano, por exemplo, está na sala de casa, um auditório ou na praça de um shopping. Já o acordeon você consegue carregar para onde você vai. Por isso, ele traz esses vários idiomas dentro dele”.

“No Centro-Oeste você encontra o ‘chamamé’. O Sul tem também uma escola de acordeonistas maravilhosos e lá eles chamam de ‘gaita’, que para nós é a ‘sanfona’. É o mesmo instrumento, mas são nomes diferentes. Enfim, acredito que essa relação está exatamente dada por conta da portabilidade do instrumento. A sanfona nordestina retrata uma música totalmente independente e que realmente tem um idioma muito peculiar e próprio”, completa Márcio Diniz.

Hora das sanfoneiras

Sabrina Ramos Leite (SP), Dandara de Araújo Pinto (MG) e Luz Marin (CE), alunas da “Turma Marinês” partilham do encanto e alegria em aprender tocar a querida sanfona. Em cada depoimento, a dedicação e certeza de que o contato com o instrumento é algo transformador.

Sabrina Ramos fala em realização de um sonho. Muito do contato com a música, resgata, despertou com a presença do avô. Seu Antônio Ramos Sobrinho era tocador de pífano no vilarejo onde morava. “Sempre quis muito aprender a tocar sanfona, mas geralmente as aulas são bem caras e o instrumento também não é muito acessível”, contextualiza.

“Saio daqui com bases para conseguir aprender, desenvolver e assim tocar outras músicas. A sanfona representa muito nosso povo e a questão da terra. O curso é muito significativo também, principalmente por formar novas sanfoneiras e sanfoneiros”, conta Sabrina.

“Seguimos aí formando não só sanfoneiros, mas guardiões dessa cultura popular”, explica Sabrina Ramos Leite (ao centro) Foto: Jeny Sousa

Ver a turma aprender, propiciando o surgimento de multiplicadores da cultura da sanfona, é algo muito simbólico, acrescenta Dandara de Araújo Pinto. Tive a oportunidade de me inserir no MST a partir da cultura e, em especial, da música. Então, toco um pouquinho de algumas coisas. Mas, nunca tinha pego a sanfona na minha vida”, enfatiza a aluna.

Dandara relembra que o avô lidava na roça, mas tirava um som também. Do interior de Minas Gerais, o parente migrou para Rondônia. Lá, no campo, realizava bailes com suas marchinhas. Tocava violão e até o ritmo percussivo com prato e garfo. Já seu pai, diz Dandara, também tornou-se trabalhador da terra e músico.

“Temos uma jornada por diante. O aprendizado da técnica foi muito intenso, pesado, mas ao mesmo tempo libertador. Nos sentimos indo para casa com as ferramentas para poder continuar aprendendo. Tivemos essa imersão no universo da cultura, ao redor das pessoas, do forró, da cultura nordestina. Passamos pelo que é a sanfona no Brasil, as diferentes linguagens e técnicas de execução do mesmo instrumento”, descreve Dandara.

“Cultura é trabalho e a arte como representação estética, simbólica dessa cultura, desse trabalho, ela brota dessa vida material, do chão, do trabalho da gente”, conta Dandara de Araújo Pinto (MG) Foto Jeny Sousa

A cearense Luz Marin, integrante do Coletivo de Cultura do MST Ceará, relata sobre a importância deste projeto. “Para nós, construir um curso nacional de sanfona, de sanfoneiros e sanfoneiras do MST, é primeiramente um grande sonho, uma coisa que vem da origem do Movimento, há 40 anos atrás”, compartilha.

“Construímos, há uns anos, uma relação muito próxima com a Secretaria da Cultura do Ceará, na perspectiva de fomentar nossas iniciativas nos territórios. Temos conseguido ter muitas conquistas, o acesso tem chegado, ainda não tanto quanto gostaríamos, dada a totalidade dos nossos grupos culturais. Mas, temos conseguido fazer esse processo de enraizamento, das políticas de cultura chegarem nas áreas de reforma agrária. O campo brasileiro é um espaço que ainda é muito negado de direitos”, completa Luz Marin.

“Temos por essência dentro do movimento a cultura política muito forte de expressão artística, seja através da literatura, seja através dos poemas, dos cordéis”, informa a aluna Luz Marin Foto: Jeny Sousa

E puxa o fole!

O nome escolhido para afirmar a primeira turma do “Curso Nacional de Sanfona” homenageia a memória da cantora Marinês (1935-2007), ícone do forró e uma das grandes vozes femininas da cultura nordestina. E foi com “Xaxado da Paraiba”, saindo das caixas de som, que cada integrante foi tomando seu lugar no palco. O show estava encaminhado.

Um momento de muita poesia e partilha de sentimentos. A cada nota tirada do acordeon, a certeza de uma conquista. A alegria em poder multiplicar a generosidade, cidadania e acesso a uma expressão cultural tão forte entre os brasileiros. A música, mais uma vez, emocionou o Centro de formação, capacitação e Pesquisa Frei Humberto.

A plateia presente, a primeira a testemunhar o trabalho dos alunos e alunos do “Curso Nacional de Sanfona”, entendeu o recado e acompanhou cada música apresentada. Crianças brincavam ao redor. Professores, gestores e convidados escutavam atentamente o concerto. Acordes e bem estar chegam junto com o meio dia.

23 alunas e alunos oriundos do Ceará e 13 cidades brasileiras Foto: Jeny Sousa

De acordo com a secretária da Cultura do Ceará, Luisa Cela, ampliar o acesso da população denota os esforços e ações articuladas por parte da gestão. “Esse é um dos grandes desafios da Secretaria da Cultura do Ceará, desconcentrar, descentralizar as ações e as ofertas das políticas públicas de cultura, com ênfase em territórios e populações que historicamente tiveram mais dificuldades e mais barreiras para acessar os recursos públicos direcionados para a cultura”, afirma.

O evento também contou com a participação de representantes da Escola Porto Iracema das Artes. Marcaram presença a coordenadora de música dos Laboratórios de Criação, Mona Gadelha, e o coordenador de formação básica e coordenador geral do Projeto aBarca, Edilberto Mendes.

Após inúmeros encantos e celebrações com a música, foi momento de comunhão na mesa com a saborosa feijoada. Um sábado para marcar as memórias de alunos e alunas, trabalhadores e trabalhadoras da cultura. Gente da terra fazendo arte e construindo cidadania em conjunto.

Singular na cultura nacional, a sanfona configurou este território de união. “Fiquei muito feliz quando a Escola Porto Iracema chegou junto dessa ideia. A princípio, a primeira pessoa que me falou desse projeto foi a Mona Gadelha. Ela já tinha me informado alguns meses atrás e eu falei que topava, podia contar comigo. Depois, Luz veio falar comigo que o projeto realmente iria se idealizar. Então, podem contar comigo”, avisa Nonato Lima.