“Adeus, Mestre Raimundo”: confira artigo de Rosemberg Cariry em homenagem a Raimundo Aniceto

16 de outubro de 2020 - 18:42 #

(Foto: Mestre Raimundo Aniceto, por Felipe Abud)

 

A Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult), como forma de resgatar a memória sobre o Mestre da Cultura do Ceará Raimundo Aniceto – que faleceu nesta sexta-feira, 16/10 – e brindar sua pujante trajetória de compartilhamento de seus saberes e fazeres como patrimônio imaterial do Estado, divulga o artigo do cineasta, roteirista, documentarista, produtor, poeta e escritor cearense Rosemberg Cariry.

 

ADEUS, MESTRE RAIMUNDO

Por Rosemberg Cariry

Uma trajetória

Eu tive o privilégio de conviver, desde a infância, com grandes nomes das artes do povo do Cariri cearense. Entre eles a banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto. Eu já os conhecia da feira, onde o velho José Lourenço Aniceto, pai de Chico, João, Antônio e Raimundo, vendia farinha. Ele era um velho índio Cariri que morreu com mais de cem anos. O vi tocando nas ruas, pedindo esmolas para São José, em algumas apresentações especiais e com ele convivi na bodega do meu pai – seu Zé Moura, também frequentada pelos outros Aniceto. Sempre tive por eles uma ligação de grande amizade.

O primeiro encontro profissional foi em 1968, quando promovemos no Seminário Sagrado Família um festival jovem de artes do Cariri. Depois, em meados da década de 70, a bandinha era presença constante nas edições do “Salão de Outubro” e nas performances de shows da minha geração, promovidos pelo Grupo de Artes Por Exemplo e pela Nação Cariri. Em alguns espetáculos que promovi, os Aniceto foram grandes estrelas como no “Viva Cariri” (na SBPC), no Encontro das Culturas do Nordeste, no Festival Internacional de Trovadores e Repentistas, no Natal da Gente, etc. Na Massafeira Livre, produzi a vinda dos Aniceto e de outros grupos do Cariri.

Cheguei a gravar em vídeo, em 1993, um clipe performático da Banda dos Aniceto com Ivo Perelman – grande saxofonista de jazz, uma cara de vanguarda. Esse material está sendo resgatado em um documentário sobre o Perelman. Foi o Perelman que patrocinou as gravações, no estúdio do Marcílio, das músicas dos Aniceto, que dariam origem à Coleção Memória Viva do Povo Cearense, que organizei com Calé Alencar, por mim convidado para integrar o projeto. A música/dança dos Aniceto, pela beleza e profundidade, rompe a camisa de força do regional e insere-se em um contexto de universalidade e de contemporaneidade. Encontramos, assim, esse grupo trabalhando com a genialidade de Hermeto Paschoal, com o free jazz internacional de Ivo Perelman, com a renovação musical/nordestina do Quinteto Violado, Hermeto Pascoal e com dezenas de outros músicos e artistas brasileiros. Esse talento extraordinário levou o grupo a se apresentar em outros países.

Os filmes

A partir da década de 1970, realizei vários registros cinematográficos do grupo e o convidei para participações importantes em alguns filmes de curta e de longa-metragem (Pífanos e Zabumbas, O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, Corisco e Dadá e Siri-Ará). Em Siri-Ará eles são atores de grande importância dentro do filme. Não estive sozinho nesse privilegiado ofício. Entre os cineastas que registraram as performances dos Irmãos Aniceto podemos citar: Geraldo Sarno, Bola, Zelito Viana, Jefferson de Albuquerque Jr., Hermano Pena, Pachelly Jamacaru, Aurora Miranda Leão, Eric Laurence e Sérgio Rezende, entre outros. Seria preciso uma detalhada pesquisa para levantar todos esses registros audiovisuais. Em 2005, a banda cabaçal participou do Ano do Brasil na França, apresentando suas músicas e danças na Cité de La Musique, em Paris. Essa apresentação foi registrada por Jackson Bantim (Bola) e Calé Alencar. Pretendo ainda fazer um filme de longa-metragem reunindo todo esse rico acervo audiovisual, da mesma forma como fiz o longa-metragem documentário de Patativa do Assaré.

A amizade

Mestres Chico, João, Antônio, Raimundo e Britim foram grandes amigos e também professores de muitos saberes das culturas e das histórias do Ceará profundo. Uma amizade mantida durante toda a vida e que continua na memória. Lembro-me que uma vez estava recebendo o título de Cidadão de Barbalha, quando a banda dos irmãos Aniceto, com formação da nova geração, mas ainda liderada por Mestre Raimundo, chegou lá (levada pela Dane de Jade) e ali se apresentou em um ritual que expressava o nosso afeto. Mestre Raimundo com o sorriso largo, o abraço afetuoso, a mais sincera amizade. Lembro-me que os Aniceto, o Cego Oliveira, entre outros nos inspiraram na criação do Projeto Mestres e Guardiães da Cultura Popular (1996). A entrega de títulos aconteceu nos I Encontro das Culturas Populares do Nordeste. Uma grande festa com mais de 300 artistas vindos de todo o Nordeste. Momento mágico.

Mestre Raimundo sabia de segredos dos encantados da Serra do Araripe e de todo o Cariri, guardava na memória muitas histórias e tinha um repertório musical imenso. Com ele se vai o último dos Aniceto da formação inicial da Banda, depois do velho índio José Aniceto. São 200 anos de música e de encantamento. A morte do Mestre Raimundo, encerra uma fase gloriosa. Foi-se embora um gigante, leve como uma pluma de passarinho. Que Deus o tenha, agora, em companhia do pai e dos seus iluminados irmãos. Que a festa no céu seja intensa. Que os santos, os anjos e as onze mil virgens entrem sem demora na roda do Trancelim.