Artigo – A criança é a dona do mundo e o mundo é a cultura, por Fabiano Piúba

30 de maio de 2019 - 14:11

 

GOVERNO DO ESTADO DO CEARÁ
II SEMINÁRIO INTERNACIONAL MAIS INFÂNCIA
Mesa: Do direito à cultura, ao esporte e ao lazer
Fortaleza, 29 de maio de 2019

A CRIANÇA É A DONA DO MUNDO E O MUNDO É A CULTURA, por Fabiano dos Santos Piúba*

Pai, quem plantou aquela árvore ali?

A noite recolheu a nossa sombra

é hora de sonhar e de dormir

mas o menino quer ouvir

histórias da sombra de uma árvore

que ali foi plantada, sabe Deus, por quem?

Um homem?

Um vento?

Uma água?

Um sol?

Uma lua?

Um tempo?

João devia tem cinco a seis anos de idade quando, ao se deparar com uma árvore enorme na rua, perguntou-me: “Pai, quem plantou aquela árvore ali?” Ficamos a imaginar. Naquela noite fiz esse acalanto e cantei para ele como numa conversa poética e filosófica com meu filho. O acalanto foi composto mais por perguntas do que por respostas. As perguntas nos fazem caminhar. Nos fazem conversar.

A arte e a cultura sempre estiveram presentes em minha vida. Tive uma avó que contava histórias encantando as palavras. Uma mãe que lia histórias embalando as palavras. E um pai que contava histórias sem medir as palavras. Tive também uma professora na alfabetização que nos ensinava a ler desenhando o sentido das palavras. Cresci sendo povoado por essas vozes. Os adultos emprestam suas vozes para dar vida aos textos orais e escritos.

Fui pai muito jovem, aos 20 anos de idade. Meu filho Pedro nasceu e eu nem sabia direito como construir o mundo com ele. Foi quando lembrei das histórias de minha avó e de meu pai e das leituras noturnas de minha mãe.

Então, todas as noites, eu e Maria cantávamos acalanto e líamos histórias na rede azul para Pedro dormir. Mas teve um dia e a criança mudou o rumo da coisa. Pedro falou uma frase no meio do tempo como se estivesse soprando uma folha:

— Estou esperando as borboletas. As borboletas bem grandão. Daquelas que vua.

Não demorou dez segundos e completou:

— Elas foram todas embora porque tinham o gostinho da mãezinha delas.

Pulei da rede, peguei o caderno e fui anotar as frases que saíam do universo do menino. Desde então, Pedro Victor também começou a contar histórias. O que era de bicho se transformando em gente e gente se transformando em bicho não estava nas histórias em quadrinhos. O tempo foi passando e tive que comprar um gravador para acompanhar as histórias de antes do sono. Depois nasceu o João e vivenciamos a mesma coisa. Só que João gostava também de contar seus sonhos logo de manhã. Hoje temos mais de 1001 histórias da infância guardadas em folhas, em fitas cassetes, na memória e no coração da gente.

Ao longo desse tempo, sempre procurava chegar em casa com livros que logo eram transformados em brinquedos ou jogos de inventar mundos diversos. Foi assim que descobrimos os livros de grandes autores da literatura universal e infantil, tanto brasileira como de outros países, bem como reencontrei contos clássicos e lendas populares.

Era com esse universo que a gente brincava de ler o mundo. Tinha horas que cada um lia na sua, desprendido do tempo. Mas, na maioria das vezes, escolhíamos um livro para lermos juntos, estirados no tapete ou deitados na cama, naquela horinha do sono ou num fim de tarde de domingo. Essas leituras nos sugeriam direções e encontros diversos. Às vezes, nos levava para um filme, uma canção, uma brincadeira, uma lembrança, um sonho, uma ideia, um sentimento ou para outro livro. E assim, a gente ia estabelecendo relações entre o que se lia com o mundo e com a vida de cada um. Nessa vivência, montamos uma biblioteca que gostávamos de compartilhar com os primos, sobrinhos, tios e amigos.

Gosto de pensar o adulto como um mediador cultural na relação da criança com o mundo. Tem um belo conto que ilustra bem esse sentido:

A função da arte / 1

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.

Viajaram para o Sul.

Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.

Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.

E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:

– Me ajuda a olhar!
O Livro dos Abraços – Eduardo Galeano

Ajude-me a olhar! A partir desse conto podemos pensar o papel dos pais, dos professores, dos educadores e mediadores culturais na formação de nossas crianças. Talvez a nossa função primordial seja exatamente esta: ajudar as nossas crianças a olharem e construírem o mundo com seus próprios olhos. Proponho aqui uma via de mão dupla. Pois meus filhos me ajudaram muito a olhar o mar também com seus olhares de crianças. Deixemos a voz com o poeta português Fernando Pessoa:

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Nessa mediação cultural, o que conta não é apenas o mundo que o adulto pensa, mas o mundo que a criança pode criar, escrever, ler, desenhar, cantar, dançar, fruir e inventar. O mundo que a criança pode construir inspirada nalguma fábula, conto, poema, canção, música, dança, teatro, cinema. Nessa relação o que conta é a expressão artística e o que ela possibilita de diálogo e de leitura de mundo por parte da criança. A criança como sujeita de sua própria história. Podemos sentir isso no belo poema Infância de Carlos Drummond de Andrade:

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.

Minha mãe ficava sentada cosendo.

Meu irmão pequeno dormia.

Eu sozinho menino entre as mangueiras

lia a história de Robinson Crusoé.

Comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu

A ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu

Chamava para o café.

Café preto que nem a preta velha

café gostoso

café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo

olhando para mim:

— Psiu… Não acorde o menino.

Para o berço onde pousou um mosquito.

E dava um suspiro… que fundo!

Lá longe meu pai campeava

no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história

era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

Com esse poema podemos perceber a centralidade na infância, na criança. Certa vez perguntaram para o indianista Orlando Villas-Bôas o que de mais profundo ele aprendeu com o convívio com os índios brasileiros. Foi quando ele respondeu:

– Na tribo, o velho é o dono da história, o adulto é o dono da aldeia e a criança é a dona do mundo.

Temos aqui uma síntese muito potente para pensarmos a dimensão das políticas culturais voltadas para a infância. O velho como dono da história é a percepção da memória e do patrimônio cultural. O adulto dono da aldeia é a percepção da mediação cultural com a comunidade e o território. A criança como dona do mundo é a percepção da prioridade na infância.

No Ceará, a partir do Governo Camilo Santana, a infância tem ganhado prioridade nas políticas públicas de forma intersetorial através do programa Mais Infância. Entre o primeiro e este segundo seminário, podemos perceber os avanços alcançados e os desafios que nos instigam a pensar uma política integrada com prioridade na infância e com ênfase na primeira infância.

No âmbito da política cultural, o Governador Camilo Santana sancionou a A Lei Nº 122/2017 que institui o Plano de Cultura Infância do Ceará. Este Plano é resultado de uma construção social e coletiva com a sociedade civil que tomou a iniciativa de propor para a Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult-CE) a formulação e implementação do Plano de Cultura Infância. A instância cearense do Fórum Nacional Cultura Infância – composto por diversas instituições sociais – tem uma atuação muito forte no Ceará e seu papel foi fundante para que o Estado fosse o primeiro a ter uma lei própria de política cultural voltada para a infância no Brasil.

O Plano de Cultura Infância do Ceará é uma ferramenta de planejamento estratégico, de duração decenal, que define os rumos da política cultural, organiza, regula e norteia a execução da Política Estadual de Cultura Infância, assim como estabelece estratégias, metas, prazos e recursos necessários à sua implementação. O Plano conta com quatro eixos temáticos: cidadania e diversidade cultural, patrimônio cultural, linguagens artísticas e educação e cultura.

“Para os fins desta Lei, entende-se por Cultura Infância o fenômeno social e humano de múltiplos sentidos que abrange, diretamente ou indiretamente, a categoria geracional de 0 (zero) até 12 (doze) anos de idade, perpassando por toda sua extensão antropológica, sociológica, política, ética, estética, simbólica, produtiva e econômica e respeitando as peculiaridades das diferentes fases da infância, sendo a criança, dentro desse escopo, entendida como sujeito histórico-cultural e de direitos com prioridade absoluta, produtor de cultura e capaz de desenvolver suas diversas linguagens, destacando-se o brincar como a sua principal linguagem, a partir daí construindo suas compreensões e significações do mundo e de si própria mediante a interação com outras crianças e com os outros membros da sociedade, sem deixar de considerar a relevância das manifestações artísticas e culturais produzidas e fruídas pela criança, com a criança e para a criança.”

O Plano estabelece oito metas que delineiam nosso mapa de navegação para 10 anos. São elas:

01. Garantir no prazo de 10 anos, após a aprovação do Plano Estadual da Cultura Infância, que 100 % dos municípios do Estado do Ceará terão espaços públicos, como praças, parques e outros, dotados de infraestrutura voltada para o acolhimento de atividades de Cultura Infância;

02. Criar o Programa Estadual Cultura Viva para a Infância;

03. Assegurar que o Governo do Estado do Ceará, em parceria com os governos municipais e outros parceiros públicos e privados, crie políticas e mecanismos para facilitar a mobilidade de famílias e crianças a espaços culturais dentro e fora da sua cidade;

04. Assegurar a transmissão dos saberes e fazeres dos Mestres da Cultura às crianças;

05. Criar um programa de educação patrimonial voltado para a infância;

06. Realizar mapeamento das expressões e manifestações relacionadas à cultura e infância em 100% dos municípios cearenses;

07. Criar um programa de formação permanente de Cultura Infância para artistas, gestores, comunicadores, agentes culturais, professores, educadores e interessados;

08. Apoiar instituições e espaços culturais que desenvolvam atividades com e para crianças.

Dentre algumas ações realizadas, podemos destacar o Edital Cultura Infância. O edital é um mecanismo de fomento destinado exclusivamente a conceder apoio financeiro a projetos de Cultura Infância em três categorias: I. Criação, Produção, Circulação e Fruição; II. Formação e Pesquisa e III. Memória Cultural. Em sua primeira edição foram contemplados 30 projetos com um investimento global de R$ 1,0 milhão de reais. Outra ação importante é o projeto Agentes de Leitura é uma ação de promoção do acesso ao livro através de jovens que atuam em suas próprias comunidades, criando ambientes favoráveis para a formação leitora dentro das casas, atendendo famílias com ênfase na infância, compreendendo a literatura infantil como uma expressão rica para formação de crianças leitoras. A Rede das Escolas da Cultura composta por equipamentos culturais vinculados à Secretaria da Cultura do Estado do Ceará – a exemplo da Escola Vila da Música no Crato – e as escolas de formação artística e cultural de instituições da sociedade civil – tais como a EDISCA, Vidança, Tapera das Artes e Casa de Vovó Dedé – são ambientes de formação que priorizam a infância. Podemos destacar que na programação dos equipamentos culturais da Secult-CE existem atividades e espetáculos voltados para fruição artística com atenção integral para as crianças de maneira compartilhada entre seus pais e professores. Os projetos “Escola no Cinema” do Cineteatro São Luiz e “Pintando do Dragão” do Centro Cultural Dragão do Mar de Arte e Cultura são boas práticas que ilustram essa tipologia de programação. O circuito de eventos culturais também é um ambiente importante para a formação dos repertórios culturais de nossas crianças. A Bienal Internacional do Livro do Ceará realizada pela Secult-CE é um lugar fabuloso para promoção da leitura compartilhada entre pais e filhos, alunos e professores com uma programação específica e espaço próprio para a infância. Ainda nesse circuito dos eventos culturais, a Secult-CE apoia festivais por meio do Edital Mecenas do Ceará e merece destaque nesse campo, o TIC – Festival de Teatro Infantil do Ceará, um espaço familiar de espetáculos que reúne teatro de animação, teatro visual, teatro de bonecos e circo promovido pelas instituições Seara e Invento Produções Culturais.

O que o Plano de Cultura Infância estabelece é a percepção do direito à arte e a cultura para infância como fatores indispensáveis de humanização e de ampliação dos repertórios culturais das crianças e o papel do mediador cultural como atores sociais e educativos nesse processo. A arte e a cultura contribuem para o bem-estar e para o desenvolvimento integrado da infância. Por isso que ela se constitui como um direito desde a gestação e da mais tenra idade. De acordo com a atriz Phylicia Rashad. “antes de uma criança começar a falar, ela canta. Antes de escrever, ela desenha. No momento que consegue ficar de pé, ela dança. Arte é fundamental para a expressão humana”.

Toda criança tem o direito às artes e à cultura. O direito de ir ao teatro, ao cinema, à biblioteca, ao museu, à pinacoteca, ao centro cultural, ao parque, à praça. O direito de ler e escrever o mundo. O direito de cantar o mundo. O direito de dançar o mundo. O direito de interpretar e expressar o mundo. O direito de brincar e se divertir com o mundo. O direito de lembar e celebrar a memória social e o patrimônio cultural do mundo. Toda criança tem o direito às artes e à cultura para crescer, brincar, pensar, criar e reinventar o mundo com sua própria existência.

Mas nós adultos – avós, avôs, pais, mães, tios, tias, professores, professoras, artistas, agentes culturais e sociais – temos um papel vital para garantir o exercício pleno do direito à arte e a cultura para as crianças porque somos os mediadores culturais nessa defesa que a criança é a dona do mundo. Por isso que essa mediação deve ser feita com muita responsabilidade, compromisso, competência, capacidade, mas também como muito afeto, ternura e amor. Esse é o caminho: a pedagogia da ternura e a arte do amor.

O contato, o tato e a experiência com a arte compartilhada entre adultos e crianças possibilitam a ampliação dos repertórios culturais e contribuem de maneira central no desenvolvimento físico, cognitivo, social e afetivo da criança. A arte é movimento, é pensamento, é relação e é sentimento. Ao tempo em que ela possibilita uma melhor leitura, compreensão, interpretação e interação com o mundo, com o outro e com a vida em sociedade – considerando o respeito e o convívio com a diferença e com a diversidade cultural, étnica, de gênero e de territórios – ela possibilita um aconchego entre adultos e crianças.

Por esse sentido e sentimento, finalizo compartilhando um acalanto de meu amigo Eduardo Loureiro Júnior que eu gostava de cantar na rede azul cor de sonho quando meus filhos eram bem crianças:

ACALANTO

Já é hora de dormir

E eu vou cantar

Pro amor que encontrei

Sem procurar.

Pois a vida é mesmo assim:

É o que é

Trouxe você de presente para mim.

Toda criança é um presente sagrado da vida e do cosmo.

* Fabiano dos Santos Piúba.

Doutor em Educação e Mestre em História. Historiador, professor, escritor e gestor cultural. Atual secretário de Cultura do Estado do Ceará.