Mestre Antônio Aniceto: lembranças e homenagens a um legado de tradição, humor e musicalidade
13 de janeiro de 2015 - 14:59
A despedida de Mestre Antônio Aniceto, integrante da mais famosa banda cabaçal do Ceará, motivou luto oficial de três dias em todo o Estado, por decreto do governador Camilo Santana. A Secretaria da Cultura do Estado do Ceará publicou nota oficial, destacando a importância e o legado de Antônio José Lourenço da Silva, o Mestre Antônio, que nesta terça-feira, 13/1, recebe no município do Crato as homenagens de artistas e conterrâneos. Entre as homenagens, o velório no Centro Cultural da antiga Estação da RFFSA e um cortejo de grupos de cultura popular tradicional, ao cair da tarde, até o sepultamento, no Cemitério Nossa Senhora da Piedade.
O Ministério da Cultura também divulgou nota de pesar, ressaltando que “Mestre Antonio dedicou sua vida para manter e transmitir a singular manifestação cultural que herdou de seus antepassados, revelada nas sonoridades e nos processos de construção de instrumentos musicais com origem no sertão cearense do século XIX”.
Servidores da Secretaria da Cultura do Estado que conviveram com Mestre Antônio compartilham lembranças sobre a habilidade musical e o bom humor do responsável pelo primeiro pife da Banda Cabaçal. “Desde menino conheci a Banda dos Irmãos Aniceto, que assim como outros mestres da cultura do Cariri ficavam mais nas feiras e na zona rural, nas comunidades, não eram ainda tão compreendidos como hoje”, destaca o dramaturgo Fernando Piancó, nascido no Crato, hoje integrante da Coordenadoria de Ação Cultural da Secult.
“Depois os mestres passaram a circular mais na cidade, levados por pessoas como Figueiredo Filho e o Mestre Elóis, que era radialista também, para participar mais de eventos, com as bandas cabaçais, os reisados, maneiro pau, lapinha… Assim eu conheci os Aniceto”, relembra Piancó, que como secretário de Cultura do Crato, no final da década de 80, aproximou-se do grupo, com quem dividira viagens para Fortaleza e para o exterior.
“No fim dos anos 80 vínhamos à capital, para ir aos programas de TV. Depois, já na década de 2000, tivemos a oportunidade de participar de eventos culturais no Crato em Portugal, com os Aniceto visitando a cidade que tinha o mesmo nome da deles. O grupo também passou brevemente pela Espanha, em um passeio”, recorda Fernando Piancó, destacando especialmente o comportamento espirituoso de Mestre Antônio nessas ocasiões.
“Ele era muito gaiato. Fazia brincadeiras com o público, contava muitas histórias. Imitava os bichos, brincava com as crianças…”, rememora. “Além de exímio tocador. Sempre que as pessoas pediam uma música assim mais conhecida, ele tocava no pife”.
Para Fernando, apesar da perda inestimável com a partida de Mestres Antônio, a Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto seguirá sua trajetória, sem interrupções. “A banda vai continuar, com certeza. Quando morreu Mestre João, que era outro nome fundamental pra banda, também houve quem se perguntasse se a bandinha iria parar. E não parou. Seguiu e seguiu bem, com a entrada do Adriano, depois do Azul… Sempre tem uma renovação, aos poucos, mantendo a característica familiar, mas trazendo outros mais jovens”.
O som da vivência regional
Já o coordenador de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural da Secult, Otávio Menezes, destaca a forma como os Irmãos Aniceto representam a originalidade das bandas cabaçais, tendo, por isto, sendo contemplados no primeiro edital do programa Mestres da Cultura/Tesouros Vivos da Cultura, do Governo do Estado, em 2004. Naquele ano, Raimundo José da Silva, o Raimundo Aniceto, irmão de Mestre Antônio, integrou a lista de artistas que recebiam o reconhecimento oficial da administração estadual, no início de um trabalho de reforço à valorização e à visibilidade de expressões vivas da cultura popular tradicional.
“Na constituição do grupo, todos os membros são importantes. Na época, pela legislação, só uma pessoa física poderia receber o prêmio, mas posteriormente isso foi revisto no edital, para contemplar grupos como um todo”, ressalta Otávio. “Os Irmãos Aniceto têm uma enorme importância, pela tradição centenária que não é só da família, e sim de toda a região do Cariri, com a referência à cabaça, que vem das manifestações indígenas, daí a banda cabaçal”, aponta.
“Os Aniceto foram realmente os continuadores, os que permaneceram fazendo aquela música tradicional, de caráter bem do dia a dia deles, da imagética da vivência nas comunidades rurais. Toda a musicalidade da banda cabaçal é voltada para esse universo cultural regional”, enfatiza o coordenador de patrimônio. “Toda música que eles tocam têm uma série de elementos de vivência própria da região, como as músicas que eles tocam imitando animais. Eles permaneceram com aquela musicalidade de raiz, de origem indígena, inclusive com o pife feito de taboca, a zabumba feita artesanalmente, com couro de animais, madeira, corda…”.
Para Otávio Menezes, a continuidade dos vínculos da família e do trabalho dos integrantes com a agricultura é outro diferencial da Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto. “Daí a designação de Tesouro Vivo para o grupo, por todas as características fieis a essa vivência, essa tradição”.
Mestre Antônio Aniceto: confira a nota oficial da Secult
A Secretaria da Cultura do Estado do Ceará manifesta profundo pesar com o falecimento de Antônio José Lourenço da Silva, o mestre Antônio Aniceto, integrante da Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto, do município do Crato, uma das mais importantes formações da cultura tradicional popular no Ceará e no Brasil. A Secult se solidariza com os integrantes da banda, com os familiares e amigos de mestre Antônio e com tantos quantos se acostumaram a aplaudi-lo, no sem-número de apresentações que sempre combinaram música e dança, tradição e presente, intensidade e alegria.
O toque do primeiro pife da Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto, comandado pelo Mestre Antônio, jamais será esquecido. Junto ao seu irmão, Raimundo Aniceto, e a seus sobrinhos, Mestre Antônio seguiu se apresentando até pouco tempo, desfilando destreza no pife e na dança, na elegância dos uniformes de cores vivas, na tradição secular das bandas cabaçais. Sempre em movimento, deixando como legado a descoberta e a admiração despertadas em novas gerações, graças à continuidade do trabalho dos Irmãos Aniceto.
Mestre Antônio, que nesta segunda-feira, 12/1, se despediu aos 82 anos, foi responsável por manter viva uma das mais belas e marcantes expressões da cultura cearense, estando sempre pronto para transmitir conhecimentos e compartilhar histórias e vivências. Assim foi, por exemplo, com os novos integrantes da banda-mirim dos Irmãos Aniceto, reunindo garotos da comunidade, unidos e encantados pelo poder da tradição, da música, da brincadeira. Tudo com a simplicidade e a gentileza que sempre caracterizaram a presença do grupo, em inúmeras apresentações e em eventos especiais, como o Encontro Mestres do Mundo.
Contribuir para que os Irmãos Aniceto sigam adiante e tenham repercussão cada vez mais ampliada para sua obra é a melhor forma de homenagear Mestre Antônio. Nosso agradecimento, mestre, por toda uma vida dedicada à cultura cearense.
Guilherme Sampaio – Secretário da Cultura do Estado do Ceará
Mais sobre os Irmãos Aniceto
A Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto surgiu em 10 de maio de 1835, tendo como idealizador José Lourenço da Silva (pai do Mestre Antônio).
A denominação “cabaçal” decorre do fato que antigamente os tambores eram confeccionados de pele de bode estirada sobre cabaças. Outra versão diz que o nome vem um ritual dos índios Cariris, em que tocavam pifanos e queimavam Jurema-preta nas cabaças.
Ainda hoje, os integrantes mantêm a tradição de confeccionar os instrumentos com peles de bode ou carneiro esticadas sobre enormes troncos de madeira, com o miolo retirado a golpes de machado. Os pífanos são feitos de tabocas.
Os irmãos Aniceto lançaram quatro registros fonográficos: o primeiro em 1978, patrocinado pelo Ministério da Educação e Cultura; o segundo em 1999, produzido pela Cariri Discos em parceria com a Equatorial Produções; o terceiro em 2004, intitulado “Forró no Cariri”, tendo como produtores as mesmas empresas do álbum anterior, e o quarto em 2013, intitulado “Sou Tronco, Sou Raiz”. Também lançaram um DVD, gravado em 2008, no Theatro José de Alencar, registrando a histórica apresentação da Banda Cabaçal em conjunto com a Orquestra de Câmara Eleazar de Carvalho.