Bienal do Livro: Milton Hatoum, um homenageado em homenagem aos seus pares

7 de dezembro de 2014 - 03:58

“Ninguém tem paciência de ser preso”. Foi adaptando a frase marcante do conto O preso, de Moreira Campos, grande homenageado da XI Bienal Internacional do Livro do Ceará, que outro grande homenageado, Milton Hatoum, deu início à conferência de abertura, na noite desse sábado (6).

Minutos antes, ele e a plateia do auditório principal do Centro de Eventos do Ceará se deleitaram com a narrativa do conto do escritor cearense José Maria Moreira Campos, apresentada por Dôra Guimarães. “Me soltem, que eu não tenho paciência de ser preso. Me soltem, que eu não tenho paciência de ser preso”. Pela emoção própria do texto, mas também pela emoção empregada pela narradora, o escritor amazonense Milton Hatoum articulou a sua fala com as falas que o antecederam.

E foi articulando palavras e leituras que ele conduziu o pensamento do público pelas obras de vários autores, fazendo uma homenagem a eles e, sobretudo, a Moreira Campos. Ao citar uma plêiade de escritores, Hatoum falava da admiração que tinha por cada um para falar da admiração em particular pelo contista nascido em Senador Pompeu, buscando identificar influências entre aqueles sobre a obra deste. E foram muitos os citados: Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Jorge Amado, Manuel Bandeira, Rachel de Queiroz… Hatoum percebe traços até do autor russo Anton Tchekhov na obra de Moreira Campos.

Numa noite de afetos, como a Bienal do Livro do Ceará 2014 se propõe a ser até o próximo dia 14, quando se encerra, o escritor amazonense não deixou de afagar outra grande escritora cearense, que estava na plateia, Ana Miranda, com quem estudou, a partir de 1967, no então Colégio de Aplicação da Universidade de Brasília, depois Centro Integrado de Ensino Médio (Ciem). “Só eu envelheci”, observou Hatoum, aos 62 anos, com a cortesia de quem escolhe e burila palavras, sobre a autora de Dias & dias e A última quimera.

Antes de começar a desenvolver a sua fala, escrita de tal forma que parecia a leitura das páginas de um livro, um modesto homenageado ainda diria que “a verdadeira homenagem, essa, sim, merecidíssima, é a que devemos prestar à memória e à literatura de Moreira Campos”. E a partir de então, o convidado para abrir o evento, com uma conferência intitulada “O autor modernista”, passou a citar vários títulos e escritores, fazendo um passeio pelo pensamento deles e por obras, algumas já muito referenciais, outras pouco conhecidas.

Para Hatoum, o leitor crítico é o que justifica a existência da literatura, inclusive por perceber e identificar escritos de altíssima qualidade, cujos autores permanecem longo tempo ignorados e com textos não publicados. Assim como as obras do contista cearense, ele citou Os ratos, do escritor Dyonélio Machado, gaúcho de Quaraí, publicada em 1935, mas só recentemente redescoberta, como o conjunto da produção do autor, pela crítica literária e no meio acadêmico.

Assim também como um dos mais ousados romances brasileiros de todos os tempos, Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, que levou nove anos para ser escrito e foi recebido, em 1924, com incompreensão mesmo entre outros escritores. Assim como as obras do poeta paraense de Belém, Max Martins, um dos representantes da renovação literária no século XX, embora ainda pouco conhecido. “Não entendo por que a obra poética de Max Martins é praticamente desconhecida. É um grande poeta, seus poemas eróticos são preciosos, na esteira do melhor Drummond”, já verbalizou Hatoum, sobre o autor de Caminho de Marahu, O estranho e Anti-retrato.

Literatura regionalista ou universal

O amazonense de Manaus, que partiu para o mundo, questiona o conceito de literatura regionalista, considerando o autor de Vidas Secas, Graciliano Ramos, por exemplo, um escritor universal, assim como são Machado de Assis ou o argentino Julio Cortazár, que também tinha nacionalidade belga, pois nasceu na Bélgica, e francesa, pois morreu na França.

Hatoum argumenta que há autores considerados regionalistas cujas obras, em quase nada, tem ambientação regional. Para aprofundar essa discussão, ele cita o ensaio Literatura e subdesenvolvimento, de Antonio Cândido, que já em 1970 propõe reflexões sobre essa categorização e a relação com o atraso e a dependência cultural, econômica e política.

O conto por si só e em Moreira Campos

Ensaísta, romancista, crítico, cronista, poeta e contista, Milton Hatoum considera o conto um gênero difícil de traduzir e, também por isso, recorre a outros expoentes da literatura brasileira e universal, como Machado de Assis, exímio escritor, e Júlio Cortázar, cujos contos são considerados como os mais perfeitos no gênero, para oferecer possibilidades de definição, concluindo, a partir da leitura desses e de autores autores entrecruzada com a própria: “Num conto cabe um mundo, e por isso a narrativa breve se aproxima da poesia, que é a arte mais sucinta”.

Sucinto como os poemas e os contos, Hatoum afirma que “os contos são histórias que impressionam o leitor”. Em se tratando de Moreira Campos, a capacidade de impressionar encanta tanto quanto a concisão. Em alguns contos do cearense – observa o amazonense –, há frases que aparecem no começo e no fim com pequenas variações, como em Os anões, O puxador de terço e As corujas, esta “uma obra-prima de concisão, duas páginas de extraordinária força poética” – qualifica.

A iniciação de Moreira Campos no mundo literário veio com Vidas marginais, em 1949, tendo como primeiro conto, Lama e folhas, que, segundo Hatoum, dialoga com o último publicado em vida, Dizem que os cães veem coisas, de 1987. Embora Moreira Campos não tenha escrito romances, Milton Hatoum compreende que Vidas marginais representa em determinada medida uma continuidade a romances dos anos de 1930, como O Quinze, de Raquel de Queiroz, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos, fonte na qual, segundo o escritor amazonense, o cearense deve ter bebido. Para Hatoum, Moreira Campos provavelmente herdou de Graciliano a densidade social e psicológica que emprega aos personagens dos seus contos.

Autor de A cidade ilhadaRelato de um certo Oriente, Dois irmãos, Cinzas do NorteÓrfãos do Eldorado, Hatoum aponta que a morte é um motivo recorrente nos contos de Moreira Campos e, assim sendo, a vida passa a ser também o motivo recorrente. E as vidas decaídas são um recorte da obra do contista cearense, principalmente em As vozes do morto e Coração alado.

Foi na obra inaugural Vidas marginais, precisamente no conto Coração alado, que Moreira Campos escreveu: “Nós, os seres anônimos, pacatos, de comportamento doméstico, vivemos mais da imaginação que da realidade”. Hatoum compreende como um desafio para o escritor transformar vida e memória em linguagem ficcional. Compartilhando do pensamento de João Cabral de Melo Neto, de que um trabalho de arte é um exercício de linguagem e não uma manifestação exclusivamente da inspiração, Hatoum acredita que um grande artista precise muito mais do que uma fonte inspiradora para atingir a excelência no seu ofício. “Um grande talento, sem imaginação e trabalho obstinado, não consegue realizar uma grande obra de arte”. Moreira Campos consegue. Para Hatoum, a obra do cearense é o resultado de uma construção artesanal, apurada, demorada.

Ao falar de Moreira Campos, Hatoum também fala de si. Ele tem uma preocupação com a elaboração do texto, uma busca incessante pela palavra mais precisa, pela frase mais adequada. Arquiteto por formação, desde os anos de 1970, Hatoum deixou de lado o exercício de projetar edifícios para se dedicar à arquitetura das palavras.

 

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