Exposição no Sobrado Dr. José Lourenço: convite à liberdade e a outras emoções

23 de maio de 2014 - 09:45

Há quem olhe a primeira fotografia e interprete: um convite à liberdade. A musa da Campanha pelas Diretas Já, soltando um pombo branco em contraste com o negrume da noite. Sob as luzes de fotógrafos e cinegrafistas, a cantora Fafá de Belém grandiosa, no vigor da juventude e da atuação política, de calça jeans, blusa amarela, estrela vermelha no peito, a voz e o sonho de um país livre.

A foto faz parte da Exposição Percurso do Artista – Achutti 35 anos de fotografia, que fica em cartaz só até esse sábado (24), no Sobrado Dr. José Lourenço – Rua Major Facundo,154 – Centro. Ainda dá tempo conferir essa e mais 72 imagens que integram a mostra comemorativa da trajetória do fotógrafo gaúcho Eduardo Robinson Achutti. Quando eternizou aquele momento simbólico para a história do Brasil, ele estava começando na profissão. O registro foi feito em 1983, na cidade natal Porto Alegre, oito anos depois de se iniciar no ofício, no Curso de Foto Cine Clube Gaúcho.

Em Fortaleza, segunda cidade a receber a exposição, após a capital do Rio Grande do Sul, em 2011, o passeio pela mostra começa inevitavelmente com a fotografia da cantora paraense, montada na parede ao fim da escada que dá para o primeiro pavimento do Sobrado Dr. José Lourenço. É preciso passar por ela para ter acesso ao pisos superiores onde estão todas as outras fotos. Para Dodora Guimarães, curadora do equipamento mantido pela Secretaria da Cultura do Ceará e responsável pela montagem local da mostra, a escolha dessa foto como primeira a ser vista se justifica tanto pela necessidade de adequação ao espaço do sobrado quanto pela expressividade da imagem. “É uma imagem forte, uma foto que simboliza bem a exposição”, resume.

Motivos outros não faltariam, como o compromisso com a história e a memória em um país que se lembra pouco, afinal em 2014 faz 30 anos da votação do projeto de emenda constitucional que devolveria aos brasileiros o direito de escolha direta dos representantes públicos. A proposta foi derrotada no Congresso Nacional, mas impulsionou o processo que foi resgatando aos poucos no país a democracia, senhora liberdade. A política e as questões sociais sempre foram foco de interesse para Achutti. Como ele mesmo diz, fez “incursões pelo mundo socialista”, indo a Cuba em 1986 e a Nicarágua em 1998, além de ter estado na Alemanha Oriental em 1989, ano em que ela deixou de existir, com a Queda do Muro de Berlim.

Tudo devidamente registrado, parte compondo a Exposição Percurso do Artista. Como não poderia deixar de ser, ela retrata a diversidade do que ele captou e das transformações do tempo, do lugar e das pessoas. Mostra, por exemplo, uma Havana de 1986 e outra de dez anos depois. Recortes das andanças pela Cordilheira dos Andes, França e Inglaterra estão também nessa caminhada de 35 anos. E muitos Brasis, muitos mesmo – do cantor e compositor Chico Buarque, da cantora e atriz Cida Moreira, da cantora Elis Regina, do ator Paulo Autran, dos poetas Ferreira Gullar e Mário Quintana, do educador Paulo Freire, do Cavaleiro da Esperança Luiz Carlos Prestes…

Na verdade, os famosos clicados por Achutti são poucos, entre tantos anônimos, porque, para o fotógrafo, o importante mesmo é ser pessoa, simplesmente, e captar a essência humana e a história que ela traça no tempo e no espaço. “O mais interessante dele é o olhar sociológico sobre a imagem e o interesse pela fotografia etnográfica, mostrando tantas culturas sob esse olhar”, observa Dodora Guimarães. “É uma exposição de muito fôlego, que nos dá a possibilidade de passear por uma vida dedicada à imagem, a olhar o outro e a buscar conhecer histórias que não eram suas, mas que o Achutti arriscou contar com muito respeito e força”, avalia Iana Soares, fotógrafa e diretora do Instituto da Fotografia (IFoto), associação de fotógrafos cearenses e uma das organizadoras da exposição.

À sensibilidade some-se o conhecimento. Aos olhos e coração à mente. Ao artista, o cientista social, antropólogo e professor do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Achutti reúne muitos saberes, frutos de uma formação sólida, mas também do conhecimento físico do mundo e da experiência cotidiana na captura do efêmero – seja pela ação rápida do fotojornalismo, seja na reflexão mais serena da fotodocumentação. Ora o foco está no homem, nas mais diferentes situações, ora nos cenários, onde a história se desenrola. Um percurso que associa seu repertório antropológico, etnográfico à longa experiência do ver. Percurso criativo que nos mostra didaticamente comprometimentos políticos, mas também o engajamento à tradição pictórica: a composição esmerada que enfatiza a mensagem dos seus registros, vinculada à preocupação em extrair a essência cultural dos assuntos. Uma trama harmoniosa e reveladora, plena de informação e emoção”, aponta Boris Kossoy, o curador da exposição, também fotógrafo, professor e pesquisador, além de historiador.

Não por menos, o escritor Millôr Fernandes, que também foi capturado pelas lentes de Achutti, fez tais “Revelações”: “Tenho diante de mim o roteiro cultural de Achutti, o assim dito Curriculum Vitae, assustador pra quem, como eu, ‘se fez por si mesmo’: sociólogo, ator, antropólogo, fotojornalista profissional, e globe-galopper – no porta-fólio fotográfico Achutti está em Porto Alegre, Nicarágua, Paris, Londres, Alemanha – no instante em que deixava de ser duas – Amapá, Oiapoque, Chuí, Cuba, Ouro Preto. Talvez aqui esteja representada uma parte, pequena, do que é um grande fotógrafo”.

Um grande fotógrafo é um grande artista e um grande artista é aquele que sabe tocar as pessoas. E a obra de arte, assim como o olhar de quem a produz e o olhar de quem a contempla, tem múltiplas possibilidades de interpretação, como diante de “Percurso”, como foi intitulada a imagem que encerra a exposição – uma longa e solitária estrada no interior da França, no ano 2000. Há quem olhe essa última fotografia e interprete, tal qual a primeira e tantas outras fotos da exposição: um convite à liberdade.

 

A qualidade da fotografia sob o olhar do visitante

Entre as impressões dos visitantes da Exposição Percurso do Artista, há de se notar a percepção sobre a qualidade da fotografia de Achutti, seja ela a partir de um equipamento digital ou analógico. “Vi as pessoas se admirando como ele trabalha bem a película e se surpreendendo ao identificar, na descrição sobre o trabalho, que determinada foto era analógica, quando parecia digital. A qualidade da foto analógica não perde em nada em relação à foto digital”, aponta Davi Macedo, estudante de História e integrante da equipe de educadores do Sobrado Dr. José Lourenço, onde trabalha há um ano e meio acompanhando os grupos de visitantes do centro de artes visuais.

Para o futuro historiador, o mais interessante no trabalho de Achutti é a presença humana, a composição das cores e a naturalidade dos registros. “Eu gosto das expressões, captadas de forma tão natural, mesmo que as pessoas estejam posando. Ele capta bem o momento da pessoa, é sensível – dá pra perceber a delicadeza dele. A luz é também natural. As cores, mesmo fortes, como o vermelho, não são agressivas, são suaves”, observa Davi.

Por isso mesmo, o visitante se envolve tanto pelo registro humano quanto pela concepção estética da fotografia de Achutti. Como não contemplar a espontaneidade da criança no beijo à estátua em momento de brincadeira ou o inusitado no formato das sombras, na apresentação das cores do céu e na angulação de uma escada que faz lembrar um caracol? Como não admirar a menininha que se acomoda aos pés de uma estátua gigante ou o conjunto de operários com uniformes cujas cores lembram de imediato a bandeira do Brasil? Como não se encantar pela criatividade de uma “Praia” em Gramado, plena serra gaúcha, disposta entre duas outras de Santa Catarina?

É preciso ver a exposição, pelos trabalhos expostos e também pelo local que os abriga. “São mais de 70 imagens distribuídas em todos os andares do Sobrado Dr. José Lourenço, um patrimônio histórico e pulsante no meio de Centro. É importante ter uma exposição tão expressiva acontecendo no Centro de Fortaleza, fortalecendo aquele bairro como um local fundamental não só para o comércio, mas também para a cultura e a circulação de arte e informação, além de chamar a atenção para a necessidade de preservação e conservação do nosso patrimônio histórico, assim como da criação de outro espaços como esse, antes que sejam destruídos ou virem estacionamentos particulares”, convida a fotógrafa e diretora do IFoto, Iana Soares.

 

Caminhos CE: mostra paralela de fotógrafos cearenses

A exposição comemorativa dos 35 anos de trabalho de Achutti se juntou às comemorações de uma década do Instituto da Fotografia (IFoto) e do 80º aniversário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O Ceará é o primeiro estado que está recebendo a exposição, entre outros por onde vai passar, dentro do Projeto Itinerância.

Paralelamente à exposição Percurso do Artista, aberta no dia 12 de abril, o IFoto montou uma mostra no térreo do Sobrado Dr. José Lourenço, onde dez fotógrafos cearenses, de diferentes idades e percursos, expõem trabalhos. Quem comparecer ao equipamento até esse sábado terá a oportunidade de ver as belas fotografias de Celso Oliveira, Chico Gomes, Fernando Jorge, Galba Sandras, Gentil Barreira, Henrique Torres, Iana Soares, Sérgio Carvalho, Sheila Oliveira e Silas de Paula.

“É uma seleção pequena de cada autor, mas que dá visibilidade e faz circular as narrativas que constroem através da imagem”, explica a diretora do IFoto e uma das expositoras, Iana Soares. Associação sem fins lucrativos, o IFoto reúne fotógrafos cearenses na tentativa de fortalecer a formação, a produção e a difusão da fotografia no Ceará.

 

Sobrado de múltiplos usos e muitas histórias

Considerado o primeiro sobrado de três andares de Fortaleza, construído na segunda metade do século XIX, o prédio tem mais de 150 anos e muitas histórias. Antes de se tornar um centro de convivência em artes visuais, o Sobrado Dr. José Lourenço foi espaço de múltiplos usos. Erguido para ser a residência do médico sanitarista que hoje dá nome ao equipamento, os pisos superiores serviam de moradia e o térreo para consultório, mas depois o prédio veio a ser local onde funcionou uma fábrica de sombrinhas, uma madeireira, uma repartição pública e, ainda mais curiosamente, por cerca de 60 anos, um bordel, também chamada de pensão alegre, como outros imóveis afins, de uma época ainda recente. “Era um espaço de sociabilidade, onde as pessoas dançavam, conversavam com os amigos… Vários ex-frequentadores ainda visitam o prédio”, lembra a historiadora Natália Maranhão.

Em 2004, o sobrado foi restaurado, e em 2007, começou a funcionar como um espaço de artes visuais. Não deixou de ter múltiplos usos, mas agora como um centro cultural. Com uma programação inteiramente gratuita, mantém exposições temporárias de fotografias, esculturas, pinturas e instalações e é um lugar também de palestras, oficinas, seminários e lançamentos de livros e publicações.

A visitação agendada ao espaço é mediada por educadores, que realizam a visita e proporcionam ao grupo um momento de atividade prática, com breves oficinas que dialogam com as atividades que ocorrem no Sobrado. Dependendo da exposição, realizam-se oficinas de colagem, pintura, desenho, xilogravura e isogravura (gravura em isopor).

Além das oficinas com mediação da equipe do equipamento, existem as oficinas ditas especiais, realizadas a cada dois meses, em média, quando é convidado um pesquisador ou profissional de referência para abordar determinado assunto. A casa abre inscrições para o preenchimento de no máximo 25 vagas e a oficina se desdobra em até três encontros em dias seguidos, por meio período. “A divulgação é feita pelas redes sociais e, geralmente, após duas horas da abertura das inscrições, a quantidade de vagas já é preenchida”, revela Natália.

O Sobrado Dr. José Lourenço também tem um cineclube mensal, com exibição de filme relacionado ao tema da exposição em andamento ou a outra atividade da programação do mês. O equipamento conta ainda com uma lojinha, mantida pela Associação dos Amigos do Sobrado Dr. José Lourenço, constituída em 2011, onde o visitante pode adquirir peças de artesanato, produtos remanescentes de exposições passadas, bolsas e blusas de divulgação do equipamento e livros.

Além da lojinha, os livros podem ser encontrados na própria biblioteca do equipamento, que mantém também uma hemeroteca digital reunindo mais de dois mil recortes de jornais cedidos pelo artista plástico Estrigas e que traçam um panorama das artes no Ceará nas décadas de 1960, 1970 e 1980.

 

Café do Zé com Silvio Frota

Nesse sábado (24), quem desejar aproveitar duas programações, em uma só visita ao Sobrado Dr. José Lourenço, terá a oportunidade de conferir o último dia de duas exposições – Percurso do Artista: Achutti 35 anos de fotografia e Caminhos CE – e ainda participar, a partir das 10 horas, do Café do Zé com Silvio Frota, colecionador de fotografias que tem um dos maiores acervos do Brasil.

“Silvio Frota é um colecionador especial. Para começar, não mora no eixo Rio-São Paulo, vive em Fortaleza, no Ceará. Depois, é um apaixonado pela fotografia. Possui uma das maiores coleções de fotografia do Brasil”, reconhece a Revista do Memorial da América Latina, na edição de abril de 2014, referindo-se ao empresário cearense.

Frequentador de leilões e feiras de arte em vários países, Silvio Frota tem acompanhado o crescimento do colecionismo de fotografias e nutrido a vontade de desenvolver novos projetos relacionados ao diletantismo pessoal, contribuindo ao mesmo tempo com a arte e a cultura local, como a criação de um museu da fotografia. “O Brasil está mudando e já temos feira de fotografia, galerias especializadas e colecionadores interessados. Por isso, quero fazer o museu”, explica à revista.

A curadora do Sobrado Dr. José Lourenço, Dodora Guimarães, aplaude a iniciativa do colecionador. “Silvio Frota tem uma rica coleção de fotografias de fotógrafos brasileiros e internacionais. É importante para o Ceará, que teve e tem grandes fotógrafos, de qualidade incontestável, alguns que contribuíram inclusive com a técnica da fotografia, sediar um museu da fotografia”, observa Dodora.

O  Sobrado Dr. José Lourenço recebe, desde 2007, ano em que foi inaugurado como um centro de artes visuais do Ceará, pesquisadores, críticos de arte e outros profissionais de referência em algum tema da área cultural para discorrerem sobre o assunto que dominam. A atividade, conhecida como Café do Zé, dá aos visitantes a oportunidade de tomarem café no local e, em seguida, assistirem a uma palestra, que mais se assemelha a uma conversa com o convidado.

O Café do Zé já recebeu expressivos representantes da arte no Ceará, como os artistas plásticos Zé Tarcísio e Audifax Rios e o fotógrafo Jarbas Oliveira, e também de fora do Estado, a exemplo da artista plástica Beth da Mata, então curadora do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro; do arquiteto e urbanista formado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Alex Nicolaeff; do artista multimídia Mario Ramiro, que residiu muitos anos na Alemanha depois de várias intervenções realizadas nos espaços públicos de São Paulo; e do escritor, crítico de arte e cineasta Fernando Monteiro, autor de Aspades, ETs Etc., considerada a melhor obra de ficção, em língua portuguesa, de 1997.

Serviço
Exposição Percurso do Artista – Achutti 35 anos de fotografia
Até sábado, 24 de maio de 2014, das 9 às 17 horas

Café do Zé com Silvio Frota, colecionador de fotografias
Sábado, 24 de maio de 2014, às 10 horas

Sobrado Dr. José Lourenço
Local: Rua Major Facundo,154 – Centro
Contatos: (85) 3101.8826 – 3101.8827 – sobrado.3107@gmail.com
Funcionamento
Terça-feira a sexta-feira: 9 às 18 horas
Sábado: 9 às 17 horas

 

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