Vamos conhecer a história do Mi?

 

Se recordar é viver, retomemos a trajetória do maior festival de formação do País para anunciar seu retorno presencial. Com a necessidade urgente de celebrar a vida e a cultura, o Mi – Festival Música na Ibiapaba retoma seus 18 anos de história (por Adriana Martins)

 

Fincada no ponto mais alto da cidade, a escultura permanece em amorosa vigília. Lá de cima da Igreja do Céu, braços abertos, Cristo abençoa o município de Viçosa do Ceará logo de manhã cedinho, e assim segue até o sol descer alaranjado e revelar a paisagem noturna, brilhante de luzes artificiais. Por décadas esse espetáculo repetiu-se quase igual, até uma grande novidade chegar em 2004.

 

Naquele ano, estreava o então Festival Música na Ibiapaba, realizado pelo Governo do Ceará por meio da Secretaria da Cultura (Secult Ceará) e do Instituto Dragão do Mar (IDM), com apresentações artísticas na praça da Igreja Matriz e no complexo turístico em torno da Igreja do Céu, além de oficinas educativas em diversos pontos da cidade. A partir dali, durante alguns dias do calendário, a paisagem zelosamente guardada pelo Cristo pulsaria com ainda mais vida, cores e sons.

 

Dedicado à música brasileira e sua diversidade, o festival foi o primeiro dos chamados Eventos Estruturantes, idealizados e produzidos pela Secult Ceará na gestão da então secretária de cultura Cláudia Leitão (2003-2006). O nome referenciava o objetivo do projeto: estruturar os campos culturais de diferentes regiões do Estado, sob o princípio comum do apoio à difusão, circulação e fruição de bens e serviços culturais, em uma estratégia de descentralização das iniciativas para além de Fortaleza.

 

Nesse sentido, os Eventos Estruturantes foram a primeira experiência da Secult Ceará na construção de um calendário turístico cultural para o Estado, a partir do perfil e das necessidades de cada território. O projeto exigiu da Secretaria mudanças profundas em sua forma de se relacionar com os municípios, no sentido de estreitar a comunicação e os laços institucionais com as governanças, os artistas e realizadores locais.

 

Gradualmente, por meio de uma extensa agenda de viagens, a Secult Ceará não apenas viabilizou a criação de novos canais de relacionamento com o Interior e o mapeamento de diferentes vocações culturais, mas o reconhecimento de carências comuns a quase todos os municípios, em especial a ausência de profissionais da cultura em seus quadros – produtores e gestores qualificados para captar recursos, realizar eventos e construir uma agenda para a cidade. A própria escassez de recursos, histórica no setor, constituía um desafio: o orçamento já exíguo normalmente permanecia concentrado em projetos na Capital.

 

“Começamos os Eventos Estruturantes literalmente na montanha, com o Festival de Música na Serra da Ibiapaba” recorda a então secretária Cláudia Leitão, no livro “Cultura em Movimento – Memórias e Reflexões Sobre Políticas Públicas e Práticas de Gestão”, de sua autoria junto com Luciana Guilherme.

 

Um desafio enorme, não apenas em Viçosa, mas em quase todos os outros municípios, foi garantir a infraestrutura necessária à logística de grandes eventos. Na primeira edição do Festival da Ibiapaba, por exemplo, houve esvaziamento de supermercados e padarias por conta da demanda de equipe e artistas, além de um blackout na cidade, devido à carga elétrica requisitada nos espetáculos ao ar livre!

 

Assim, o Governo do Estado precisou colaborar com ações transversais à atuação da Secult, para garantir quadros suficientes de fornecimento de água, energia elétrica, acesso, entre outros elementos. Nesse sentido, Cláudia Leitão ressalta no livro o papel pedagógico do Estado durante a construção e realização dos Eventos Estruturantes, na medida em que o poder público passava a fomentar nas regiões a organização de uma cadeia produtiva de eventos.

No ritmo certo

Mas por que a escolha da música como linguagem para o primeiro Evento Estruturante? Cidade tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Viçosa do Ceará também já era reconhecida por sua vocação musical. “Pela proximidade de Viçosa do Piauí, imediatamente compreendemos que aquele festival teria um grande potencial para se tornar um grande encontro de instrumentistas do Norte e Nordeste do País”, escreve Leitão.

 

Assim, o Mi foi idealizado como um grande encontro de formação musical para alunos da rede pública estadual, músicos, educadores e instrumentistas do Ceará e estados próximos. Já na primeira edição, foram oferecidas capacitações a cerca de 600 estudantes, inscritos em 27 oficinas nas áreas de Musicalização, Instrumental, Vocal, História e Projetos Especiais.

 

Entre os professores estavam artistas consagrados como Heriberto Porto, Carlinhos Ferreira, Rafael dos Santos e Consíglia Latorre, então diretora artístico-pedagógica do Festival. No palco montado próximo à Igreja do Céu, a Orquestra Eleazar de Carvalho brilhou sob a regência do maestro Márcio Landi, com homenagens a Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga e Villa-Lobos.

 

A ênfase nas oficinas e sua grande aceitação logo nas primeiras edições concretizaram a vocação educacional e de fomento do Festival, a partir do entendimento da música não apenas como uma linguagem para expressão e criação artística, mas como ferramenta de transformação social.

 

Guiados pela proposta do intercâmbio de experiências, esses encontros possibilitaram tanto práticas de iniciação quanto de aperfeiçoamento em instrumentos, além de facilitar a construção de redes de contato e estimular a formação de orquestras, bandas e corais, contribuindo para a formação de músicos, artistas e público em todo o Ceará.

 

“O Festival foi um sucesso desde sua primeira edição. Músicos profissionais e amadores, cantadores, professores de música, pesquisadores e demais interessados nos fizeram encerrar muito cedo as inscrições e lotaram as aulas e apresentações“, recorda Leitão no livro. “Nossa dificuldade era levar de volta para Fortaleza alguns nomes consagrados que, simplesmente, se encantaram com aquela cidade linda, de clima agradável, com uma cachaça deliciosa. Assim foi com Luiz Melodia, Johnny Alf e Miúcha” escreve.

Crescimento

 

O Festival atende uma demanda crescente de formação na área da música, que se renova a cada ano, apresentando possibilidades de qualificar esses participantes para desenvolver suas carreiras artísticas. Seja na formação voltada para a excelência como instrumentista ou no campo do mercado, como técnicos em diversas áreas da música

 

Seu legado o reafirma enquanto passo fundamental no processo de interiorização da política cultural do Governo do Estado, com importantes caminhos abertos e impacto direto na vida de milhares de pessoas, bem como na economia, no turismo e na cultura da região da Ibiapaba. Nesse sentido, vale ressaltar um aspecto crucial do evento, enquanto iniciativa pública: o acesso gratuito a toda a programação, que assegura a contribuição do festival também para a democratização do acesso à arte.

 

Ao longo dos anos, novos profissionais e atividades foram incorporados ao Mi, que além da formação técnica abraçou ainda a missão de construir plateias – não somente por meio da curadoria plural de shows, mas pela promoção de debates e palestras.

 

Nessa trajetória, o festival reuniu em seus palcos nomes de destaque no País, como as pratas da casa Raimundo Fagner, Amelinha, Kátia Freitas, Paula Tesser, Cainã Cavalcante e Daniel Groove, e convidados de fora do porte de SambaJazz Trio (RJ), Cama de Gato (RJ), Oswaldinho do Acordeon (RJ), Sexteto Mundano (SP), Cabruêra (PB) e Felipe Cordeiro (PA).

 

Simultaneamente, a lista de artistas envolvidos no eixo formativo não fica atrás. Da curadoria pedagógica até as aulas práticas, passaram pelo Mi artistas como Waldonys (CE), Tarcísio Sardinha (CE), Arismar do Espírito Santo (SP), Kiko Dinucci (SP), Alfredo Barros (PE), Amilson Godoy (SP), Daniel Ganjaman (SP), Curumim (SP), Junior Primata (RN), além de músicos estrangeiros como o produtor e pianista Adam Faulk (EUA) e o maestro Pablo Trindade Roballo (Uruguai).

 

Já pela coordenação geral e pedagógica passaram nomes importantes do ensino, da docência, das música e da gestão cultural no Estado como Angelita Ribeiro, Lucile Horn, Consiglia Latorre, Alfredo Barros, Heriberto Porto, Valéria Cordeiro, Arley França, Patrícia Marin e Daina Leyton.

 

Em quase duas décadas, professores e alunos viram aumentar substancialmente o número de atividades e de vagas, tendo chegado ao recorde de 1.472 inscritos, 890 selecionados e 60 oficinas em 2018. Bom, recorde pelo menos até 2019, quando o Mi emitiu nada menos que 1400 certificados para alunos, músicos, instrumentistas, educadores e público geral que concluíram as atividades de mais de 90 oficinas.

 

Em 2023, o Mi recebeu 1.160 inscrições, sendo 800 selecionados. A programação inclui 62 atividades formativas, entre oficinas de instrumentos, práticas de grupo e oficinas optativas, além de shows e palestras. Somente as ações formativas devem reunir mais de 800 alunos, que vão ter a oportunidade de aprender e trocar ideias e experiências nas mais diversas áreas musicais.

Conexões

 

Para melhor representar as edições cada vez mais robustas e a crescente abrangência de sua proposta, o novo apelido “Mi” foi lançado em 2017 – uma referência às iniciais das palavras “música” e “Ibiapaba” e à terceira nota da escala musical. Entre os destaques daquela 13º edição, o sotaque de Recife sobressaiu-se, com apresentações do Spok Quinteto e seu frevo eletrizante e do Amaro Freitas Trio, com sua mistura de jazz e cultura popular afro-brasileira.

 

A programação sinalizava mudanças importantes experimentadas naquele ano, quando, ao lado da música popular e de concerto, o festival abriu mais espaço para sonoridades contemporâneas, ganhou outra identidade visual e um patrono, o maestro cearense Alberto Nepomuceno. Nesse sentido, uma das ações inéditas foi a estreia dos Mestres da Cultura do Ceará na grade de shows e oficinas, como parte de uma estratégia de valorização desses homens e mulheres reconhecidos por seus saberes e arte-ofícios.

 

Na ocasião, o Mi recebeu três grandes Mestre da Cultura, que se revezaram no palco Eleazar de Carvalho, montado no Centro Histórico de Viçosa: Zé Pio (Reisado), João Evangelista (Cordel) e Cirilo (Dança Popular). No penúltimo dia do festival, eles se apresentaram juntos, ao lado do mestre Totonho (luthier) e do ator, músico e instrumentista Orlângelo Leal, criador do grupo Dona Zefinha. Os três participaram ainda da oficina “Instrumentos que brotam da alma”, voltada à criação e prática instrumental de pífanos, sanfona, rabeca, voz e percussão.

 

Já em 2018, sobressaiu-se na programação do Mi um conjunto de discussões sobre atuação no mercado de trabalho e políticas públicas voltadas ao setor da música, com a retomada do Encontro Estadual de Regentes de Bandas e do Encontro Setorial da Música. Lançados no ano anterior, os dois eventos encontraram no festival um terreno fértil para o fortalecimento de suas agendas, em especial de ações de articulação e intercâmbio.

 

Em 2019, sob a proposta de fortalecer o vínculo já estabelecido com os Mestres da Cultura e fomentar as conexões da música com a história e a identidade da região, o Mi realizou o roteiro “Memórias de Viçosa do Ceará”, propondo uma interação entre o patrimônio e seus diversos significados, e possibilitando uma experiência de sentidos vividas ao longo do tempo num mesmo espaço.

 

As visitas, guiadas pelo pesquisador e historiador Gilton Barreto, deixaram ainda mais evidentes as conexões fundamentais entre o festival e a riqueza cultural de Viçosa do Ceará e da região da Ibiapaba, a partir de reflexões sobre elementos arquitetônicos, da natureza, da gastronomia e das narrativas locais.

Acessibilidade

 

Na 18ª edição, não foram poupados esforços para viabilizar a ampliação do quadro de professores para mais de 30, viabilizando assim a oferta de oficinas para arte-educadores, instrumentistas, cantores, maestros, produtores musicais, crianças, entre outros. É destaque desta edição ainda, a oferta de formações na área de acessibilidade cultural.

 

A Secult reconhece na cultura e nas artes a possibilidade de transformar vidas e realidades, sendo direitos básicos e vitais. E, como direito, devem atender a todas as pessoas, sendo parte intrínseca das políticas da Secretaria. Dessa forma, o Festival Mi também traz a acessibilidade para suas pautas.

 

“A acessibilidade cultural no festival segue os princípios da acessibilidade transversal, da acessibilidade estética e do ‘nada sobre nós sem nós’. Isso significa que todas as pessoas do festival se envolvem na acessibilidade. Haverá formação para todas e todos os professores sobre acessibilidade atitudinal, e na programação artística buscamos uma acessibilidade estética: recursos como libras são compreendidas como recursos artísticos. Pessoas com deficiência compõem a equipe do festival entre professores, artistas e coordenação. O Festival MI é para todas as pessoas!”, diz Thamyle Vieira, analista de gestão cultural da Secult Ceará e representante da coordenação de Acessibilidade do Mi.