Com apoio da Secult, Samba da Vicença une música, teatro e dança para celebrar resistência das mulheres negras, no Cineatro São Luiz e CCBJ

30 de abril de 2024 - 12:53 # # # # #

Foto: Ancestralidade Lívia de Paiva e Lia Mota

Espetáculo sobe aos palcos do Cineteatro São Luiz e do Centro Cultural Bom Jardim, equipamentos Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, contando a história de Vicença Soledade, mulher negra moradora do Bom Jardim que encontrou no samba um “desabafo” contra o preconceito e as injustiças sociais.

Misturando música, dança, teatro e religiosidade, o musical retrata a luta feminista contra o racismo, o machismo e a violência de gênero.

 

“Aprendi na senzala a tristeza da rima” – Roque Ferreira

O samba é celebração, resistência, memória coletiva. É o rebento de inúmeras mulheres negras que acolheram e defenderam, ao longo de uma história secular, essa expressão tão definidora da nossa cultura. O samba é batuque, dança, religião. É mão no couro, desabafo na boca e invenção na alma. É, como diz Caetano, o filho da dor, forjado no drama cotidiano de inúmeras mulheres que resistem ao racismo estrutural e que amassam em sangue e música as injustiças sociais e as violências de gênero. Mas é também alegria: de fazer nascer, todos dias, um país possível em esperanças e afetos.
É a partir dessa ciranda imemorial, onde se articulam arte, espiritualidade e feminismo negro, que nasceu o musical Samba da Vicença. O espetáculo sobe ao palco do Cineteatro São Luiz nos próximos dias 2 e 3 de maio, e ao palco do Centro Cultural Bom Jardim nos dias 10 e 11, sempre às 19h, apresentando a história de Vicença Soledade de Almeida. Com direção geral de Cris Faustino, a apresentação conta a história dessa moradora do Bom Jardim, misturando música, dança e teatro para abordar a realidade das mulheres negras e periféricas do Brasil.

“Nos inspira muito a ideia de reconhecer a existência dessas mulheres, situá-las em sua ancestralidade e como construtoras da história e do dia a dia. A gente quer desocultar essa existência”, explica Cris Faustino. Para isso, o Samba da Vicença apresenta um repertório de sambas e cânticos sagrados do universo das religiosidades afro-brasileiras, acompanhados de dança e contação de histórias, que não apenas marcaram a experiência de Vicença, mas que também servem de referência para essa luta feminista construída a partir das periferias.

A realização do musical é do Coletivo Samba da Vicença e o projeto é apoiado pelo IX Edital das Artes de Fortaleza – Secultfor, através da Lei nº 10.432/2015 e pela Secretaria da Cultura do Ceará, por meio do XII Edital Ceará de Incentivo às Artes, Lei nº 18.012/2022.

O elenco conta com mais de 15 artistas que se revezam ao longo do espetáculo. Entre as cantoras, nomes como Auri D’yruá, Nega Lu, Patricia Trajano, Vládia Soledade, além da própria Vicença. Formando o time de instrumentistas estão Flávia Soledade (percussão e direção musical), Gaby Bastos (percussão), Kássia Oliveira (percussão), Mona Mendes (cordas), Jajá Aquino (percussão), Joyce Farias (cordas) e Nara Whistler (trompete). A bailarina Alyne Ewelyn e a atriz Doroteia Ferreira completam o elenco, que também conta com participações cênicas de Mãe Didi de Xangô, Nayra Sophia, Nayana Santos, Mestra Pequena (capoeira e maculelê) e Instrutora Matraka (capoeira e maculelê).

O samba unindo arte, política e espiritualidade

“O samba foi e é um grande instrumento de resistência negra. Ele traz a vida em poesia e ginga; carrega em si muita ancestralidade e, sob muitos aspectos, ele nos interpreta e nos revela”, define Faustino. “O Samba da Vicença é uma ousada tentativa de interseccionar vida cotidiana, arte, política e transformação”.
Ela explica que as mulheres negras da geração de Vicença, hoje com 64 anos, têm uma história muito marcada pelo trabalho doméstico infantil e, depois que cresceram, enfrentaram múltiplas formas de violência, inclusive a violência sexual. No caso da protagonista, Soledade nasceu no Piauí, trabalhou como doméstica em Teresina e em Caxias, no Maranhão, até vir para Fortaleza, no início dos anos 1970, acompanhando as primeiras famílias que se estabeleceram no Bom Jardim.

Nessa caminhada, enfrentou o racismo, a pobreza, o desemprego e a depressão. Sempre encontrando no samba uma forma de “desabafo”. “Eu conheci o samba através do meu pai, ainda na minha infância. Sempre amei. Queria participar dos blocos em Teresina, mas não tinha dinheiro para comprar as roupas. Então, nunca tive como viver essa minha paixão pelo samba”, lembra Vicença.
Só depois que a filha Flávia, que assina a direção musical do espetáculo, começou a trabalhar como musicista, Vicença teve a oportunidade de se reaproximar do ritmo. Começou a participar de blocos como o “Doido é tu”, montado no CCBJ, e atualmente, integra o grupo Criarte, formado apenas por mulheres do Grande Bom Jardim. “O samba é uma forma da gente se libertar, com a dança, com o canto, com o ritmo. É um desabafo”, ela define.

“A força preta existe e resiste no Ceará”

“No caso da Vicença, especialmente, ela viveu a magia de descobrir-se como pessoa negra e foi num processo de adoecimento e cura mental que ela se politizou, entendeu muita coisa e mudou muitos conceitos”, explica Cris Faustino. “Isso é uma grande inspiração e pra nós, pretas, uma chave de leitura da história coletiva não só das mulheres negras, mas de todo o povo negro espalhado pelas periferias e pelo mundo, em diáspora forçada, onde elas conseguem se assentar, mas em constante movimentos e descobertas”.

Na busca por emprego em Fortaleza, Vicença se aproximou do universo da umbanda. Pelo fato de ser uma mulher negra, ela era sempre preterida nas escolhas das funcionárias que iriam passar a trabalhar num fábrica localizada no bairro da Serrinha. Mesmo dormindo na frente do portão para ser uma das primeiras da fila, nas manhãs de seleção sempre perdia a vaga para outras candidatas brancas. Até que uma amiga lhe recomendou uma ida a um terreiro e, lá, ela ouviu de uma entidade que sua convocação aconteceria no dia seguinte. Dito e feito: no início da manhã, ocupando os últimos lugares da fila, Vicença foi chamada para trabalhar na fábrica.
“Até então, eu não acreditava. Mas depois desse episódio, eu passei a frequentar, passei a fazer as oferendas para os meus guias e meus orixás, aquilo foi muito importante pra mim”, ela recorda. “E foi um apoio para toda a vida, me ajudou com a criação dos meus filhos, me ajudou a superar dificuldades, me ajudou até a superar um episódio de depressão profunda”.

No musical, essa referência à presença da espiritualidade na vida da protagonista vem representada pela música e pelas coreografias da bailarina Alyne Ewelyn, que tentou traduzir em dança a potência da luta dessas mulheres. “Esse é um espetáculo muito potente. A história da Vicença é muito característica da história das mulheres negras, das mulheres nordestinas. É uma honra participar desse projeto”, Alyne explica, destacando a importância de uma iniciativa que também resgata o lugar da negritude no Ceará, fato que sempre foi invisibilizado pela história oficial.

Apesar de Vicença não ter nascido no Ceará, o espetáculo procura mostrar como sua negritude nordestina é o reflexo dos encontros e desencontros das pessoas e populações negras em suas resistências em todos os locais deste país. “Levando em consideração todas as formas de violência e preconceito que essas mulheres já viveram e que nós ainda vivemos, é importante lembrar o quanto é valioso contar essa história, falar de mulheres negras, nordestinas, cearenses, porque as pessoas negam a negritude no Ceará, apagam a negritude do Ceará, e nós estamos falando para o mundo que essas mulheres estão aqui, que a força preta existe e resiste”, afirma Alyne.

No repertório, a força da ancestralidade

No repertório do espetáculo, estão composições de autores como Kiko Dinucci (“Padê Onã”), Capinam e Roberto Mendes (“Yayá Massemba”), Wilson Moreira e Nei Lopes (“Coisa da antiga” e “Senhora Liberdade”), Caetano Veloso (“Oração ao tempo”), Chico Buarque (“Dura na queda”), Janet de Almeida (“Pra que discutir com madame”), entre outros.

“A proposta é apresentar, através da música, uma contação de histórias que diga para quem veio antes que seus esforços não foram em vão; que, através dessa batucada de bamba, reverencie nossa ancestralidade e mostre o quanto isso tem poder”, explica Flávia Soledade, filha de Vicença e diretora musical do espetáculo.

Segundo Flávia, as letras foram escolhidas e organizadas para dialogar com os períodos da vida de Vicença, acompanhando o recorte cronológico do espetáculo. “Comecei a ouvir as músicas com uma pegada mais litúrgica. Tendo em vista que o samba também é religião, fui em busca da sua forma mais ancestral e aí caí em cima dos toques de candomblé, dos pontos de caboclos, das loas de maracatu e assim por diante”, afirma.

O fim do espetáculo é embalado por músicas que, segundo Flávia, misturam resistência e reverência: “Toque de São Bento Grandede Angola” e “Jogo de Angola”, de Paulo Cesar Pinheiro; “Minha Missão”, de João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro; e “A força que vem da raiz”, de Roque Ferreira, interpretada pelo própria Vicença.

“É isso que eu quero que o repertório cante, quero mostrar o poder nas coisas marginalizadas, o poder da mulher negra, da música de batuque, da alegria de um boteco, do orgulho de pertencer a um território e de ver beleza na vida sentada na calçada”.
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SERVIÇO:

SAMBA DA VICENÇA, musical do coletivo Samba da Vicença & TPM. Dias 2 e 3 de maio, 19h, no Cine São Luiz. Dias 10 e 11 de maio, 19h, no Centro Cultural Bom Jardim. Entrada gratuita. Instagram: @sambadavicenca. Todas as apresentações terão tradução e interpretação para LIBRAS.