O Bando Somos Todas Marias traz as memórias da luta do povo negro para a Bienal
20 de novembro de 2022 - 15:26

Regina Márcia – Foto: Lucas Calisto
No palco A Herança que Seremos, Regina Márcia, Dhanny Marinho e Cida Sousa trouxeram décadas de história, de dor, e de conquistas para a comunidade do Canindézinho
Hoje é dia 20 de Novembro, dia do encerramento da 14ª Bienal Internacional do Livro do Ceará e também Dia da Consciência Negra. O dia, proposto pelo movimento negro com base no suposto dia da morte do líder quilombola Zumbi dos Palmares, é um dia que marca a luta do povo negro por sua liberdade, seja de Zumbi contra o sistema escravista, seja nos tempos modernos em uma sociedade ainda racista. A Bienal do Livro, com seu tema “De toda gente para todo mundo”, também tem por objetivo se inserir nessa luta, trazendo para os seus vários palcos a oportunidade de discussão sobre as raízes e os direitos do preto.
A última sexta, dia 18, trouxe para a arena A Herança que Seremos um dos mais fortes momentos do movimento negro e periférico de toda a programação da Bienal: a roda de conversa Marias In Favela – Memória, Povos Negros e Territórios, conduzida por Regina Márcia, Dhanny Marinho e Cida Sousa, do Bando Somos Todas Marias. O Bando tem sua origem intimamente ligada com a União dos Moradores do Bairro do Canindézinho (UMBC), fundada em 1988 por Dona Nazira, que precisou vender um cabrito para pagar a documentação da organização. Regina, a mais velha das três membras da conversa, chegou na comunidade do Canindézinho em 1992, e logo cedo se juntou à UMBC. “Eu vi a necessidade, no bairro, de muitas coisas, de muita estrutura. E eu não sou só de criticar, de não ter e não fazer. Então eu me engajei. ‘O que eu posso fazer pra ajudar?’ E eu virei voluntária, e depois de um tempo secretária, e depois presidenta por dois mandatos.”
Mesmo com pouquíssima verba, baseada em uma contribuição mensal de 2 reais de alguns habitantes do bairro, a UMBC se tornou uma organização muito importante para a vida pública do Canindézinho, fazendo diversos serviços públicos que não eram prontamente providenciados para a população. Lembrando um dia específico de mutirão de prestação de serviços, Regina enumera algumas das atividades: “Cortar cabelo, tirar documento, exame de glicemia, atendimento de conselho tutelar, mulher que quer se separar, defensoria, tudo que você imagina na vida tá acontecendo hoje.”
E uma das mais constantes e mais importantes atividades da UMBC era a de escola, pois não existia escola no bairro. “A própria associação era a sala de aula”, explica Regina. “Se você não faz isso, não tinha como as crianças terem acesso à escola. E a associação serviu até aí, até a gente lutar, conquistar um espaço anexo a uma escola do Estado, pra depois lutar mais anos, pra ter uma escola pra chamar de sua. Mas muitas pessoas que foram membras da associação depois vieram da nossa sala de aula.”
Entre essas pessoas, a própria Cida Sousa, educadora social e membra da roda de conversa. Cida fala, de forma contundente: “eu estou aqui como número que a história não matou. Sou número que se desviou da rota do tiro. Quando eu conheci a Regina, lá em 2003, eu apedrejava o prédio da associação, pensava que aquilo só prestava pra roubar o dinheiro do povo. Eu não tinha um centavo pra dar, eu era usuária de substâncias psicoativas, passei por situação de rua. E um dia eu recebi o convite pra tomar um café e conversar sobre uns cursos que iam acontecer lá, e eu fiquei lá até um dia desses. O crime não conseguiu continuar me tendo, e a rota do tiro não conseguiu me acertar.”
Diferentemente de Danilo Pinheiro de Araújo, amigo de Cida, aluno de Regina, educador social e voluntário na UMBC, assassinado com sete tiros no dia 23 de outubro de 2009, poucos minutos depois de deixar a sede da associação, depois de dois intensos dias de trabalho para organizar uma comemoração atrasada do Dia das Crianças. Regina diz, com a voz embargada mas firme, que “falar de uma luta, e não falar das perdas que a gente tem, é passar por cima das memórias e dos sentimentos, e eu jamais vou passar por cima disso. Até hoje esse caso não foi pra frente, algumas páginas do inquérito desapareceram, e hoje a gente só depende da justiça de Deus, porque a justiça da Terra é falha.”
E ainda o é. 13 anos depois do assassinato de Danilo Pinheiro, 19 anos depois da formalização no calendário escolar do Dia Nacional da Consciência Negra, 51 anos depois da sua concepção, 327 anos depois do evento que motiva a data 20 de novembro, o assassinato de Zumbi dos Palmares. Até hoje o povo negro luta por justiça, por igualdade, por seus direitos. E o Bando Somos Todas Marias faz parte dessa luta, e a fortalece, ao manter tão viva a memória das lutas de antes.
Em sua 14ª edição, a Bienal Internacional do Livro do Ceará acontece de 11 a 20 de novembro de 2022 no Centro de Eventos do Ceará. Apresentada pelo Governo do Ceará, por meio da Secretaria da Cultura e do Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura (IDM), o evento acontece em parceria com a Secretaria de Educação do Ceará (Seduc), Secretaria de Turismo do Ceará (Setur), Secretaria de Ciência, Tecnologia e Educação Superior do Ceará (Secitece), Programa Mais Infância, Universidade Estadual do Ceará, Biblioteca Pública Estadual do Ceará (Bece), o Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas do Ceará, a Câmara Cearense de Livro e o Sindilivros CE. O apoio é da RPS Eventos, Sesc Senac, Banco do Nordeste Cultural, Universidade de Fortaleza, Unilab, Universitária FM, TV Ceará, Jornal O Povo/Vida e Arte, Fundação Demócrito Rocha, Pixels Educação Tecnológica, Instituto Juventude Inovação, Secretaria Municipal de Educação e Prefeitura de Fortaleza.