Desafios em pauta: Como ter sustentabilidade em um mercado ainda em construção?

19 de novembro de 2022 - 22:01 #

Em mesa nesta quarta-feira (16), o editor Alan Mendonça, o autor Ricardo Kelmer e a livreira Mileide Flores discutiram estratégias para escritores e outros profissionais do setor de livros no Ceará. Foto: Txai Costa

Todo escritor ou editor interessado em viver do seu trabalho deveria ter conferido a mesa “De Gutemberg a web: a venda em trânsito livre”, com Alan Mendonça, escritor e fundador da Editora Radiadora, e Ricardo Kelmer, escritor, sob mediação de Mileide Flores e toda sua experiência como livreira. O encontro foi destaque desta quarta (16) do eixo O Livro e seus Mercados, que integra a programação da XIV Bienal Internacional do Livro do Ceará, realizada pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult Ceará) e Instituto Dragão do Mar (IDM). ⁠

Durante a conversa, os três trocaram ideias valiosas sobre estratégias de trabalho e sustentabilidade para profissionais envolvidos no setor de editoração. Kelmer abriu os trabalhos com uma provocação fundamental: como falar de mercado independente se o Ceará não tem um “mercado oficial”? “No caso da comida, por exemplo, há produtores no campo, distribuidores, lojas, mercados, restaurantes, lanchonetes. E temos os informais, que ocupam as calçadas, trabalham em casa. E de livros? Qual a cadeira? Temos esse mercado?”

Nesse mesmo sentido, Alan lembrou uma fala do escritor cearense Mailson Furtado: “uma vez perguntaram a ele o que achava da crise do mercado de livros no Ceará; ele respondeu que ela não existia. Para haver crise, precisa existir mercado”, brincou. Ao longo do debate, porém, os três concordaram na existência, sim, de um tipo de mercado – “caso contrário não estaríamos aqui, dentro de uma Bienal do Livro”, comentou Alan. Entre eventos pontuais, editais, publicações financiadas com recursos próprios ou em ações coletivas, há um consenso: o mercado no Estado é sazonal e insatisfatório, não dá conta da demanda pelo lado da produção. “Ele pode não existir no tamanho e na organização, na perenidade necessários, mas existe de alguma forma”, resumiu Mileide.

Fica claro, portanto, que a construção de um mercado de livros tem requisitos específicos, que envolvem não apenas a necessidade utilitária, mas o desejo, a partir da curiosidade, do gosto pelo saber, pelo aprendizado e pela descoberta. “Aí caímos na velha questão política: a quem interessa educar o povo?”, provocou novamente Kelmer. Diante de um cenário tão desafiador, então, quais estratégias são possíveis não apenas para viver do trabalho com livros, mas para fomentar um mercado consumidor? A partir de sua experiência como editor, Alan pontuou uma dualidade essencial: “existe filas enormes nas gráficas para imprimir livros, por exemplo. É uma parte poderosa da cadeia, junto às grandes editoras do País. Ou seja, existe, sim, um mercado que envolve o desejo de publicar. Ao mesmo tempo, ele muitas vezes leva a uma frustração quando as caixas de livros se acumulam nas casas dos autores. Há a alegria de ter seu trabalho ali, publicado, mas sem ser lido. A grana entrou, o mercado girou, mas não por inteiro”, observou o editor.

Nesse sentido, uma possível saída apontada pelos três convidados envolve a circulação de autores e seus trabalhos pelas cidades. “Os editais, por exemplo, são a política pública mais importante desse setor, mas há uma cultura de direcioná-los para fazer livros”, critica Mileide, prontamente seguida por Alan. “Edital focado em publicar é besteira. Deveriam fazer com que ocupássemos lugares públicos com nossa arte, encher a cidade de pequenas possibilidades. Para publicar, uma vaquinha com poucos números e a coisa se resolve, o livro acontece. O Estado deveria pagar para a gente se encontrar, autores e público”, comentou o editor.

A partir desse raciocínio, Kelmer citou um projeto lançado por ele, o Flor de Resistência, voltado à circulação de trabalhos de escritores independentes, em especial com trabalhos sobre democracia, justiça social, meio ambiente e pautas afins. “Reunimos autores que se cotizam e custeiam uma publicação coletiva, assumindo o compromisso de distribuir gratuitamente metade do número de exemplares que adquirirem, para uma população que mora ou trabalha nas ruas. Ora, um motorista de Uber trabalha na rua; um motoqueiro, um vigilante, um porteiro. Todos ali no entorno do autor. É uma oportunidade de ser lido, ter seu trabalho circulando pela cidade. Com 1.500 exemplares alcançamos um público diverso a um custo razoável, quebrando barreiras de classes sociais”, comemorou o autor.

O projeto mostra ser possível driblar a lógica tradicional do mercado e, de quebra, reunir pessoas em torno do livro, do ato de ler. “Às vezes os produtores culturais se encastelam em seus mundos artísticos, e isso dificulta o diálogo com a população. É um exemplo de como podemos quebrar regras. Autor não precisa obrigatoriamente de patrocinador, livraria, estrutura oficial para existir”, completou Kelmer. O que não impedeesa estrutura de participar; ao contrário, ela é muito bem-vinda. “A livraria Lamarca, por exemplo, vende os livretos do Flor da Resistência”.

Outra experiência exitosa nesse sentido foi a série de lançamentos do livro “Para Belchior com amor”, assinado por Kelmer e Alan. “Fizemos uns 15 lançamentos na cidade, em bares e locais do tipo, e a publicação se pagou rápida, porque tem apelo. E os eventos mexem com os jogos de desejo, de movimento. O cara vai no lançamento, gasta R$ 200 de cerveja e não leva o livro. Aos poucos, vamos quebrando isso”, relatou Alan. “O autor tem que ir aonde o povo está. Sei que o papel dele na cadeia é criar, não vender, mas não dá para se contentar com esse papel passivo. Eu nunca consegui, penso também no autor como vendedor, e aí precisa mesmo de uma certa cara de pau e disposição”, brincou Kelmer. No melhor estilo “faça você mesmo”, vida longa à cara e coragem de todos os que insistem no ofício das letras.

Em sua 14ª edição, a Bienal Internacional do Livro do Ceará acontece de 11 a 20 de novembro de 2022 no Centro de Eventos do Ceará. Apresentada pelo Governo do Ceará, por meio da Secretaria da Cultura e do Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura (IDM), o evento acontece em parceria com a Secretaria de Educação do Ceará (Seduc), Secretaria de Turismo do Ceará (Setur), Secretaria de Ciência, Tecnologia e Educação Superior do Ceará (Secitece), Programa Mais Infância, Universidade Estadual do Ceará, Biblioteca Pública Estadual do Ceará (Bece), o Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas do Ceará, a Câmara Cearense de Livro e o Sindilivros CE. O apoio é da RPS Eventos, Sesc Senac, Banco do Nordeste Cultural, Universidade de Fortaleza, Unilab, Universitária FM, TV Ceará, Jornal O Povo/Vida e Arte, Fundação Demócrito Rocha, Pixels Educação Tecnológica, Instituto Juventude Inovação, Secretaria Municipal de Educação e Prefeitura de Fortaleza.