Pandemia, prazer e literatura feminina foram as pautas da mesa de curadoria de terça-feira

20 de novembro de 2022 - 13:45

Pandemia, prazer e literatura feminina foram as pautas da mesa de curadoria de terça-feira

Foto: Bienal

Tércia Montenegro e Kah Dantas compuseram a mesa “As delícias da literatura cearense”, mediada por Sara Síntique. Foram seguidas por Fernanda Trías na mesa “As veias abertas da literatura da América Latina”, conduzida por Nathan Matos

À primeira vista, não haviam grandes conexões entre as Mesas de Curadoria da noite de terça-feira, na sala 3 do mezanino leste da 14ª Bienal Internacional do Livro do Ceará, uma realização da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult Ceará) e do Instituto Dragão do Mar (IDM). O tema da primeira mesa era “As delícias da literatura cearense”, e o da segunda, “As veias abertas da literatura da América Latina”. Um tema que remete ao prazer, outro que faz alusão à agonia. Um tema que se foca em nosso estado, um que engloba vinte países. Porém, Kah Dantas, Tércia Montenegro e Fernanda Trias, mesmo separadas em duas mesas diferentes, teceram discussões que se conectavam intimamente. ⁠

A noite começou com a fala de Tércia Montenegro, curadora da Bienal, professora-doutora da Universidade Federal do Ceará e escritora premiada nacionalmente. Falando sobre seu novo livro, As Delícias, cujo título inspira o tema da mesa, Tércia disse que “os livros, pra mim, são muito representativos de momentos, de fases da vida. Esse romance, As Delícias, começou justamente na era da pandemia. Era uma época, todos nós sabemos, de muita dor, de muita ansiedade, todas as notícias que a gente ouvia eram pavorosas. Então eu senti a necessidade de fazer movimento contrário, de ir em direção a algo que fosse pulsão de vida. E pensei justamente na ideia do sexo, da literatura erótica.”

As dores e ansiedades da pandemia também foram um assunto central na fala de Fernanda Trias, escritora uruguaia e professora na Universidade dos Andes em Bogotá. Seu último livro (e primeiro traduzido para português), Gosma Rosa, foi escrito em 2019, mas parece antecipar a chegada do COVID-19, descrevendo um vírus que aflige uma cidade inteira, provocando o uso de máscaras e um lockdown, elementos de ficção especulativa que se tornaram extremamente palpáveis. E os dilemas associados a essas – fundamentais – são pontos de muito interesse para Fernanda: “Na pandemia se perde muito. Não é somente uma ameaça à saúde, uma ameaça à vida, à perder pessoas queridas. Era também um perigo perder uma forma de vida, perder uma memória afetiva, perder as coisas sensoriais que estão vinculadas a essa maneira de viver.”

E foi como resposta a esses perigos, a essa possível perda do sensorial, que se construiu não só o mais recente romance de Tércia, mas também águas abundantes de um planeta recém-nascido, o primeiro livro de poemas de Kah Dantas, escritora cearense e mestra em literatura. Kah explica: “realmente, são poemas erótico-amorosos que vieram daquele momento, que eu tinha acabado de começar um relacionamento amoroso. Eu não tinha muita escolha, ou a gente ficava junto ou a gente não se relacionava, porque a gente precisava ficar no mesmo espaço. Então a gente escolheu viver juntos durante aquele ano de enclausuramento, de lockdown, e aí nasceu esse livro.”

Literatura latina e feminina

Mas não foi apenas os dilemas pandêmicos que as autoras discutiram na noite de terça. Um outro assunto muito presente foi o ato de escrever enquanto mulher. Para Tércia, publicando seu primeiro trabalho de literatura erótica, havia um risco claro. “Me aconselharam a não publicar. Eu pensei em não publicar, ou em publicar com um pseudônimo, mas eu relia os originais e pensava ‘Mas esse livro é meu. Por que que eu vou assinar com outro nome? Por que eu vou me acovardar?’ De uma maneira geral, sempre há esse sobressalto associado à mulheres que se permitem falar sobre prazer, sobre gozo, sobre o próprio corpo. E se a gente não assumir esses riscos, cada vez mais eles vão se impor como barreiras.”

Fernanda também percebe o tratamento diferente que as escritoras recebem, e o conecta com um dilema análogo vivido através da América Latina, e também caro à literatura cearense: a disputa entre “a capital” e as outras regiões. “Dentro de cada país da América Latina que fala espanhol,” explica a autora, “há um apagamento das literaturas regionais. A Literatura é a da capital, quase sempre. E é muito difícil para os escritores que não estão na capital poder terem uma presença e serem lidos. E isso me faz pensar na escrita das escritoras, mulheres. Porque A Literatura é a escrita por homens, e a outra é a literatura feita pelas mulheres. A Literatura pura e simples é largamente o que é escrito pelos homens. Isso vem mudando nos últimos anos, e eu tenho me beneficiado dessa mudança, mas ainda há muito para mudar.”

E é esse desejo por mudança na literatura que une Kah Dantas e Fernanda Trias, uma cearense e uma uruguaia, uma morando em São Paulo e a outra em Bogotá, mas por um momento separadas por meras horas no palco da Bienal. Kah começa a explicação: “Eu fico muito feliz com isso que a gente vive, de poder ler pessoas que estão aqui, do nosso lado. Eu tinha aquela ideia que o escritor era aquele ser inalcançável, recluso, que vive numa casa fantástica, não faz xixi nem cocô, tá ali só escrevendo, e aí de repente a gente tá aqui convivendo com pessoas que estão produzindo, e produzindo coisa muito boa.” E Fernanda parece complementar: “Pra mim o mais importante é que haja a literatura local, porque temos que aprender a ler-nos. Nós só vamos existir enquanto identidade na medida em que nos vemos representados nas literaturas locais.”

Em sua 14ª edição, a Bienal Internacional do Livro do Ceará acontece de 11 a 20 de novembro de 2022 no Centro de Eventos do Ceará. Apresentada pelo Governo do Ceará, por meio da Secretaria da Cultura e do Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura (IDM), o evento acontece em parceria com a Secretaria de Educação do Ceará (Seduc), Secretaria de Turismo do Ceará (Setur), Secretaria de Ciência, Tecnologia e Educação Superior do Ceará (Secitece), Programa Mais Infância, Universidade Estadual do Ceará, Biblioteca Pública Estadual do Ceará (Bece), o Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas do Ceará, a Câmara Cearense de Livro e o Sindilivros CE. O apoio é da RPS Eventos, Sesc Senac, Banco do Nordeste Cultural, Universidade de Fortaleza, Unilab, Universitária FM, TV Ceará, Jornal O Povo/Vida e Arte, Fundação Demócrito Rocha, Pixels Educação Tecnológica, Instituto Juventude Inovação, Secretaria Municipal de Educação e Prefeitura de Fortaleza.

Para saber mais da programação da Bienal Internacional do Livro Ceará, basta acessar AQUI (programação sujeita a alterações).